A Pantera e a Besta: a formação da linha revolucionária do Partido Pantera Negra

- N.S. [1]

 



 

 

"O maligno sistema do colonialismo e do imperialismo surgiu e se consolidou com a escravização dos negros e o tráfico de negros, e ele irá certamente chegar ao fim com a completa emancipação do povo preto."

- Mao Tsé-tung, Declaração de apoio aos negros americanos na sua justa luta contra a discriminação racial pelo imperialismo dos E.U.A.

 

Toda linha política, toda tática e estratégia revolucionárias são conquistadas pela luta. Se em determinado momento do processo histórico as massas abrem um novo caminho para um futuro comunista e avançam na via da revolução proletária, é só pela luta que o conseguem. Luta teórica, ideológica e política contra as formas da dominação burguesa, certamente, mas também luta contra os efeitos desta dominação na sua própria linha de conduta. A trajetória que levou à formação do Partido Pantera Negra (Black Panther Party/BPP), à suas vitórias, seus erros e sua herança política e ideológica paras massas pretas e proletárias em todo o mundo, esta trajetória foi, ela também, resultado de uma longa luta. Uma luta contra o imperialismo dos EUA, seu complexo industrial-militar e toda a ideologia do supremacismo branco – luta tão mais importante porque desenvolvida desde o interior das fronteiras do Império, da barriga da Besta. Mas também uma luta contra os efeitos ideológicos do imperialismo no próprio campo dos movimentos de massas: contra o revisionismo, o dogmatismo e o culturalismo.

Seria possível tomar como ponto de partida desta trajetória o encontro de dois jovens universitários pretos norte-americanos, lutando para encontrar uma resposta política para as demandas de massas colocadas com as Revoltas de Watts, em 1965, quando a tensão da opressão racial explode nas ruas de Los Angeles depois de mais um abuso policial contra as massas pretas nas periferias da cidade.

 

Por todo esse tempo, Bobby e eu não pensávamos no Partido Pantera Negra, não tínhamos nenhum plano para liderar uma organização, e o Programa de Dez Pontos ainda estava no futuro. Havíamos visto Watts se levantar no ano anterior. Havíamos visto como a polícia atacou a comunidade de Watts depois de gerar o problema em primeiro lugar. Havíamos visto Martin Luther King ir a Watts em um esforço para acalmar o povo, e vimos a sua filosofia de não-violência ser recusada. O povo negro foi ensinado a ser não-violento, isso era muito profundo em nós. Para que servia, no entanto, a não-violência quando a polícia estava determinada a agir pela força? Havíamos visto a polícia de Oakland e a Patrulha Rodoviária da Califórnia começarem a carregar as suas espingardas abertamente como uma maneira de assustar a comunidade. Vimos tudo isso, e reconhecemos que a consciência crescente do povo negro estava quase no ponto de explodir. As pessoas devem se relacionar com a história de sua comunidade e com seu futuro. Tudo que vimos nos convenceu de que nosso momento havia chegado.

Dessa necessidade nasceu o Partido Pantera Negra. Bobby e eu finalmente não tínhamos outra escolha a não ser formar uma organização para envolver nossos irmãos das classes de baixo.

Trabalhamos nisso em conversas e discussões. (...) Também líamos. A literatura dos povos oprimidos e de suas lutas por libertação em outros países é muito grande, e passamos por esses livros para ver como as suas experiências poderiam nos ajudar a entender nossa situação difícil. Lemos a obra de Frantz Fanon, especialmente Os condenados da Terra, os quatro volumes do Presidente Mao, e Guerra de guerrilhas, de Che Guevara. Che e Mao eram veteranos das guerras do povo e tinham construído estratégias vitoriosas para libertar o seu povo. Lemos os trabalhos desses homens porque os víamos como companheiros; o opressor que os havia controlado estava nos controlando, tanto direta quanto indiretamente. Acreditávamos que era necessário saber como eles conquistaram sua liberdade para ir adiante em conseguir a nossa. No entanto, não nos limitávamos a simplesmente importar ideias e estratégias; tínhamos que transformar o que aprendíamos em princípios e métodos aplicáveis aos nossos irmãos no bairro. (NEWTON, 2009, p. 115-116)

E não se deve estranhar que sejam estes dois jovens – Huey P. Newton e Bobby Seale – a ter dado o passo mais importante até aqui na construção de uma verdadeira linha revolucionária para a luta de massas nos EUA. Por um lado, é verdade que este passo só foi dado porque os dois já herdavam um grande acúmulo teórico e prático tanto do movimento comunista quanto do movimento negro estadunidenses. Por outro lado, mesmo esta herança não havia conseguido superar, mesmo em suas etapas iniciais, os grandes limites colocados pelo maior Estado imperialista da história contra o desenvolvimento das lutas populares no interior de seu território. Mas é só com estes dois jovens que esta herança de luta se torna concreta e, portanto, verdadeira – é como disse certa vez Lênin: “não há verdade abstrata, a verdade é sempre concreta”. Toda nova verdade, especialmente no campo das lutas de classes, começa sempre a ser enunciada como hipótese por um pequeno número de pessoas, sendo comprovada com sua verificação prática no momento em que é experimentada pelo movimento de massas e efetua avanços concretos em sua luta.

É uma pequena análise do processo de constituição desta nova verdade revolucionária na luta de massas e do povo preto que pretendemos desenvolver aqui.


O desenvolvimento de uma luta anticolonial de novo tipo

             Região do Black Belt nos EUA
 

 A organização da grande exploração escravista moderna no sistema de plantations teve, como se sabe, um papel central na constituição da formação social estadunidense[2], assim como de grande parte das formações sociais coloniais[3]. O fenômeno da escravidão moderna retoma as relações de produção escravistas, em que o próprio corpo do produtor direto é apropriado por um proprietário como meio de produção, no interior do processo de acumulação capitalista, o que leva o processo de trabalho escravo a uma intensificação do ritmo de trabalho na medida em que é combinado com o sobretrabalho capitalista, integrando, como diz Marx, os horrores da escravidão aos horrores da acumulação capitalista[4]. É especialmente esta alteração do ritmo de trabalho pela integração na acumulação capitalista, aliás, que caracteriza a alteração de fisionomia dos processos de trabalho pré-capitalistas ao serem subordinadas ao capitalismo nas formações sociais coloniais.

A empresa colonial, que constituiu a parte essencial do processo da acumulação primitiva, foi amplamente dependente da reprodução destes modos de produção pré-capitalistas[5]. Desde o início da empresa colonial já era de conhecimento comum que o trabalho escravo apresentava baixa produtividade, baixa capacidade de inovações técnicas e dependia essencialmente de uma força de trabalho com grande potencial de resistência. Mas, como aponta Eric Williams, sabe-se também que em determinadas circunstâncias a escravidão apresenta vantagens econômicas evidentes.

 

Em culturas como a cana-de-açúcar, o algodão e o tabaco, cujo custo de produção se reduz consideravelmente em unidades maiores, o dono de escravos, com a produção em grande escala e turmas de trabalho organizadas, consegue ter um uso mais rentável da terra do que o camponês proprietário ou o pequeno agricultor. Para esses produtos agrícolas, os grandes lucros podem compensar os custos mais altos da mão de obra escrava ineficiente. Onde o máximo que se exige em termos de conhecimento é simples e rotineiro, é essencial que a mão de obra trabalhe de maneira constante e coordenada – a escravidão – até que, com o crescimento vegetativo e a importação de novos engajados, a população alcance seu ponto de densidade e a terra disponível já tenha sido distribuída proporcionalmente. Quando e apenas quando se atinge esse estágio, as despesas da escravidão, sob a forma do custo e sustento dos escravos, produtivos e improdutivos, superam o custo dos trabalhadores assalariados. Como escreveu Merivale: “O trabalho escravo é mais caro do que o livre sempre que exista uma abundância de trabalho livre”. (WILLIAMS, 2020, p. 33)

 

            Foi esta demanda do capital comercial por trabalho escravo nas colônias que, como se sabe, organizou o tráfico negreiro em todos os seus horrores[6]. As formações sociais coloniais escravistas, desde o Brasil até o sul dos EUA, dependeram essencialmente do sequestro e do transplante sistemático de populações africanas para seus territórios, em um processo massivo de mercantilização do próprio corpo destas populações e de sua apropriação como meio de produção pela empresa colonial. Os horrores da escravidão colonial levavam necessariamente à decomposição desta força de trabalho escravizada e à intensificação igualmente vertiginosa das violências exigidas para controla-la e obriga-la ao trabalho forçado.

            A reprodução das formações coloniais escravistas, no entanto, passou a encontrar globalmente limites cada vez maiores a partir do fim do século XVIII. Em um primeiro momento, se colocou para a burguesia comercial inglesa, principal organizadora do tráfico negreiro, a necessidade de minar a grande lucratividade da colônia São Domingos, atual Haiti, pertencente a sua grande rival histórica, a burguesia francesa, nos últimos anos do século XVIII[7]. Além disso, o crescimento relativo da disponibilidade de força de trabalho livre e o desenvolvimento concentração fundiária tornavam progressivamente, de maneira lenta mas estável, o custo do trabalho escravo maior do que o do trabalho livre. Mas, principalmente, a grande Revolução Haitiana – em parte consequência do mesmo desabastecimento relativo de força de trabalho escravizada gerado pela decomposição do tráfico inglês – havia desestabilizado profundamente a conjuntura nas formações sociais coloniais escravistas de toda a América e Caribe desde seu início em 1791. A tendência permanente de resistência dos escravizados ao processo de trabalho tende a se intensificar ao mesmo tempo em que os senhores de escravos de todo o continente tendem a aumentar a repressão da força de trabalho escravizada diante do temor de uma repetição dos “horrores de São Domingos”.

Estes limites assumem uma intensidade particular no caso dos EUA, em que a formação econômica colonial escravista dos estados do sul entrava em atrito cada vez maior com a necessidade de uma acumulação de capitais autocentrada pela formação econômica capitalista dos estados do norte. É verdade que estas duas formações econômicas não eram, a princípio, antagonistas e até o início do século XIX se retroalimentavam em grande parte. Mas cada vez mais as contradições entre os processos de acumulação de cada uma destas áreas de produção aumentavam e se tornava inviável que continuassem a se manter unificadas na mesma superestrutura jurídica e política. Enquanto os estados do norte demandavam medidas de proteção de suas indústrias domésticas, de estímulo à formação de um mercado interno e o aumento da oferta de força de trabalho livre, os estados do sul exigiam uma política de livre comércio com o exterior, a expansão das áreas destinadas à monocultura exportadora e dependiam da reprodução da força de trabalho escravizada.

Como se sabe, estas contradições se condensaram em uma forma antagônica em torno da questão da escravidão, detonando a Guerra Civil dos EUA. O papel fundamental desempenhado pela escravidão colonial do sistema econômico capitalista dava à Guerra Civil dos EUA uma importância de alcance mundial. Foi exatamente nestes termos que Marx a percebeu. Em carta a Engels de 11 de janeiro de 1860, Marx diz que 

 

Na minha percepção, a coisa mais importante acontecendo no mundo hoje é, por um lado, o movimento entre os escravos na América, começado com a morte de Brown, e o movimento entre os escravos na Rússia, por outro (...). Acabo de ler no Tribune que houve uma insurreição de escravos no Missouri, naturalmente suprimida. Mas o sinal agora foi dado. (MARX & ENGELS, 1985, p. 3-4)[8]

 

Esta percepção levará Marx a assumir uma consistente posição abolicionista radical, encontrando na luta contra a escravidão a chave para o desenvolvimento de uma linha revolucionária nos EUA. Marx via a abolição da escravidão como a condição necessária da emancipação dos trabalhadores estadunidenses, pois “todo o movimento operário independente [nos EUA] ficou paralisado durante o tempo em que a escravidão desfigurou parte da república. O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro” (MARX, 2013, p. 372). Mais do que isso, Marx apontada para a necessidade de superar os limites constitucionalistas em que a burguesia do norte buscava contar o desenvolvimento da Guerra Civil e da luta contra a escravidão, encaminhando-a para um processo revolucionário. Em carta a Engels de 7 de agosto de 1862, Marx escreve que 

 

Os nortistas foram dominados desde o início pelos representantes dos estados escravistas vizinhos (...). O sul, por outro lado, agiu como uma unidade desde o início (...).  O próprio norte transformou a escravidão em uma força militar pró e não anti-sulista. O sul deixa o trabalho produtivo aos escravos e conseguiu, assim, conquistar espaço sem interrupção e com suas forças de combate intactas. (...) Na minha percepção, as coisas vão tomar outro rumo. O norte irá, finalmente, fazer guerra de maneira séria, recorrer a métodos revolucionários e derrubar a supremacia dos estados escravistas vizinhos. Um único regimento de negros teria um efeito notável nos nervos sulistas (...). Se Lincoln não ceder (o que, no entanto, ele irá fazer), haverá uma revolução. (...) No fim das contas, penso que uma guerra como esta deve ser conduzida de maneira revolucionária, enquanto os ianques têm tentado até aqui conduzi-la de maneira constitucional. (MARX & ENGELS, 1985, p. 400)[9]

O ritmo de desenvolvimento dos acontecimentos posteriores à Guerra Civil não deixaria de comprovar as posições de Marx e os limites políticos do republicanismo burguês para resolver a questão. Depois de um período de relativo avanço na instituição de sua igualdade jurídica em relação à população branca no pós-abolição, a população negra dos EUA passa a enfrentar novamente o racismo de Estado. Embora o Ato de Direitos Civis de 1866 e a 14ª emenda constitucional de 1868 proclamassem a cidadania jurídica dos negros estadunidenses, já a partir de 1876 os estados do sul iniciaram um processo acelerado de instituição de leis segregacionistas e de caráter discriminatório, conhecidas como “leis Jim Crow”[10]. A doutrina jurídica do “separados, mas iguais” que, posteriormente, encontraria espaço para uma bizarra inversão no garveyismo, obrigava a população negra ao uso de serviços públicos e instituições separadas daquelas da população branca, de qualidade via de regra imensamente inferior aos oferecidos à população branca. Além disso, especialmente nos estados do sul, em que continuava a habitar sua imensa maioria, a população negra é cada vez mais alvo de grupos paramilitares supremacistas brancos como a Klu Klux Klan, além da habitual repressão discriminatória dos aparelhos policiais. Os massacres organizados por organizações terroristas contra a população negra nos EUA do fim do século XIX alcançaram números impressionantes: Ida Wells estimava que em 1895 por volta de pelo menos 10 mil pessoas já tivessem sido executadas nos linchamentos racistas dos estados do sul (WELLS, 2020, p. 8).

A ideologia racista que alimentava toda a violência política contra esta população era um traço superestrutural, dependente da organização da escravidão colonial. Que os africanos tenham sido escravizados, aponta Eric Williams, não era uma necessidade histórica definida pelo critério racial, mas pelas demandas econômicas da empresa colonial.

A razão [da escravidão] foi econômica, não racial; não teve nada a ver com a cor da pele do trabalhador, e sim com o baixo custo da mão de obra. [As feições do negro], o cabelo, a cor e a dentição suas características ‘sub-humanas’ tão amplamente invocadas, não passaram de racionalização posterior para justificar um fato econômico simples: as colônias precisavam de mão de obra e recorreram ao trabalho negro porque era o melhor e mais barato. (WILLIAMS, 2020, p. 50-51)

No entanto, como demostram todos os acontecimentos desde o surgimento da formação ideológica racista no século XIX – e é sempre importante lembrar que as formações ideológicas anteriores ao século XIX que buscavam justificar a escravidão assumiam uma forma teológica, e não racial –, a autonomia relativa da superestrutura é capaz de fazer com que uma formação ideológica perdure depois da decomposição de sua base material, se adequando às novas realidades econômicas que podem sustentar sua efetividade. Mais do que isso, as formações ideológicas possuem uma eficácia própria e podem, dentro de certos limites, retroagir sobre a base econômica, reproduzindo seus conteúdos diretamente na organização desta. Como aponta Fanon, nas formações sociais coloniais “é evidente que o que divide o mundo é, para começar, o fato de pertencer ou não pertencer a uma determinada raça (...). Nas colônias a base econômica também é uma superestrutura. A causa é a consequência: você é rico porque é branco, e é branco porque é rico” (FANON, 2011, p. 455). O fim do século XIX nos EUA é um caso exemplar dessa eficácia específica da ideologia. Por um lado, a população negra permaneceu sendo alvo do racismo do Estado ianque e de uma decomposição constante de sua capacidade de reprodução em consequência da ideologia racista. Por outro lado, a própria sobrevivência da ideologia racista estava diretamente ligada à base econômica e das formas de mobilização da população negra como força de trabalho: camponês sujeito a formas semi-servis como a parceira e a meação ou deslocado para as piores terras nos estados do sul, os pretos permaneciam uma força de trabalho potencialmente rebelde por sua submissão a formas de exploração particularmente intensas,  rebelião latente contra a qual os aparelhos repressivos do Estado (seja em suas formas militares, policiais ou paramilitares) usualmente empregavam táticas de “repressão preventiva”.

Em todos os censos até o ano de 1910, mais de 90% da população afro-americana vivia nos estados do sul[11], e até 1900 80% desta população no sul vivia em zonas rurais. Esta realidade contrastava nitidamente com o processo de urbanização e proletarização da população que se desenvolvia no norte do país. Estas áreas rurais no sul dos EUA, concentradas especialmente em torno de uma faixa de terras férteis que vai da Carolina do Norte à Louisiana nas quais se organizou o sistema da produção escravista colonial de algodão, formam a região conhecida como Black Belt. A população negra nesta região formava um grande contingente de camponeses pobres que continuaram a trabalhar sob controle dos senhores de terras em formas servis, sendo alvos da violência racista e das leis de segregação. Esta composição demográfica e geográfica só começa a se alterar, muito lentamente, a partir de 1916, com o desenvolvimento da chamada Grande Migração, tendo perdurado basicamente até o fim dos anos 1960. Foi neste cenário que, a partir do fim do século XIX, o povo preto nos EUA começou seu processo de resistência organizada. Em resposta às leis segregacionistas, a população negra desenvolveu iniciativas locais de ajuda mútua, com a formação de escolas, igrejas e instituições de assistência social. Em 1905 começa a organização do que se tornaria a Associação Nacional Para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP), sob a direção intelectual de W.E.B. du Bois – teórico que mais tarde se afastaria cada vez mais de formas reformistas e assistencialistas de mobilização para se aproximar do campo socialista.

É nesta a conjuntura que surge o movimento comunista estadunidense. O Partido Comunista dos EUA (PCUSA) foi fundado em 1919, como um dos efeitos em escala mundial da Revolução Russa de 1917. Mas é apenas no fim dos anos 1920, depois de mais de uma década de formação através da luta, que o PCUSA apresenta uma linha ajustada para a luta de massas da população negra.  Esta linha, na verdade, foi essencialmente obra do grande Harry Haywood, primeiro teórico comunista a iniciar a elaboração de um programa político revolucionário que abordasse especialmente os problemas da população negra nos EUA e um dos fundadores, no fim dos anos 1960, da organização maoista Liga Outubro, que posteriormente se tornaria o Partido Comunista (marxista-leninista) dos EUA, organização revolucionária anti-revisionista. Quando as Teses do VI Congresso da Internacional Comunista¸ de 1928, afirmam que a IC enfatiza particularmente “a necessidade de organizar por todos os meios o movimento dos negros nos Estados Unidos da América e nos demais países” (HAYWOOD, online) e que “consequentemente, o Congresso exige que uma luta decisiva e implacável seja travada contra todas as manifestações do ‘chauvinismo branco’”, é sob a orientação de Haywood, na URSS desde 1925, que o faz. Em 1933, Haywood escreve A luta pelo posicionamento leninista sobre a questão negra nos EUA, expondo de maneira sistemática a linha revolucionária que havia desenvolvido desde o fim dos anos 1920. No texto, Haywood escreve que

 

O atual programa do nosso Partido sobre a questão negra foi formulado primeiramente no Sexto Congresso da Internacional Comunista, em 1928. Baseado nas mais exaustivas considerações de todas as peculiaridades, desenvolvimento histórico, econômico, condições culturais e de vida do povo negro nos EUA, bem como na experiência do Partido em seu trabalho junto aos negros, aquele Congresso definitivamente estabeleceu o problema dos negros como o de uma nação oprimida na qual existiam todos os requisitos para um movimento nacional revolucionário contra o imperialismo estadunidense.

Esta resolução era uma aplicação concreta do conceito marxista-leninista da questão nacional às condições dos negros e foi concebido a partir das seguintes premissas: primeiro, a concentração de grandes massas de negros nas regiões agrícolas do chamado Black Belt onde constituem maioria da população; em segundo lugar, a existência de uma herança poderosa do antigo sistema escravocrata na exploração dos trabalhadores negros – o sistema de plantação extensiva baseado na meação, supervisão senhorial dos cultivos, escravidão por dívida, etc.; em terceiro lugar, o desenvolvimento, nas bases dessas reminiscências escravistas, de uma superestrutura política de desigualdade expressa em todas as formas de proibições sociais e segregação; negação dos direitos civis, direito a franquias, exercício de cargos públicos, assentos nos tribunais de júri, bem como nas leis e costumes do Sul. Este sistema cruel é sustentado por todas as formas de violência arbitrária, a mais cruel sendo a peculiar instituição americana dos linchamentos. Tudo isso encontra sua justificação teórica na teoria imperialista da classe dominante sobre a inferioridade ‘natural’ do povo negro.

Todo este sistema cruel de opressão, ainda que mais agudamente sentido na pele pelas massas negras do Sul, também afeta seu status social no resto do país. Os negros agricultores pobres e trabalhadores agrícolas fugindo da miséria e da fome nas plantações do Sul para os centros industriais do Norte, não obtém a liberdade desta forma. Pelo contrário, em seu calço está também a herança da escravidão nas plantações, resultando em menores salários, piores condições de vida, discriminação na vida social inclusive no Norte “liberal”. Assim, a revolução agrária, isto é, a luta dos negros pobres e famintos da terra do latifúndio e dos camponeses pobres do Black Belt e do Sul por terra, pela destruição de todos os vestígios dos laços escravistas – isto, junto à luta geral pelos direitos democráticos do povo negro em todo o país, bem como por seus direitos pela existência nacional independente no Black Belt, constituem os eixos principais do movimento de libertação nacional do povo negro nos EUA. (HAYWOOD, online)[12]

Nação oprimida no interior da Besta, colônia interna dos EUA[13], o povo preto deveria iniciar uma verdadeira luta de libertação nacional contra o Estado imperialista e supremacista branco dos EUA. Mais do que isso, é a mobilização revolucionária das massas negras que tende a se apresentar como a forma mais avançada e mais radicalizada do movimento de massas nos EUA, devendo o Partido Comunista liderar a explosão das massas negras que rapidamente se desenvolve e transformar esse movimento em um poderoso movimento do proletariado revolucionário pelo enfraquecimento e destruição do domínio do imperialismo estadunidense”. (HAYWOOD, online).

A linha comunista para a questão negra, portanto, era a condução de uma luta de libertação nacional como condição inicial para a revolução estadunidense. No entanto, esta luta anticolonial de novo tipo, que provou sua justeza durante todas as mobilizações radicais do povo preto nos EUA através do século XX, foi deixada de lado pelo PCUSA. Ao longo dos anos 1940 e 1950 a via revolucionária de Haywood foi isolada pelo desenvolvimento do revisionismo, na forma da linha de Earl Browder e sua defesa da “convivência pacífica”, linha que em muitos aspectos já antecipava as posições de Kruschov. A luta entre o campo anti-revisionista e o revisionismo no PCUSA se intensificaria cada vez mais a partir dos anos 1950. Haywood, próximo da linha dos comunistas chineses desde pelo menos os anos 1940, sai do partido no ano de 1959 quando, sob a direção do revisionismo, a linha revolucionária sobre a questão negra é oficialmente abandonada. Segundo a linha de Browder, a necessidade de uma luta de libertação nacional do povo preto havia sido superada pelo desenvolvimento do capitalismo nos EUA, que levaria a uma integração progressiva entre as populações branca e afro-americana. O processo histórico dos EUA até o início do século XXI mostrou com clareza qual era a linha correta. Em todo caso, com o refluxo do movimento comunista em consequência da combinação da dominação da linha revisionista, por um lado, e da perseguição de Estado na forma do macarthismo, por outro, a direção da luta do povo preto foi majoritariamente tomada pelas demandas relativas aos direitos civis. A distinção entre a linha revolucionária e a demanda por direitos civis é clara, e tem como ponto de partida o reconhecimento da legitimidade do Estado imperialista ianque para regular e mediar de determinada forma as tensões sociais relativas aos conflitos raciais. Caberá ao movimento comunista anti-revisionista retomar, a partir dos anos 1960, a linha revolucionária de uma luta anticolonial de novo tipo.

 

Do movimento anti-revisionista à fundação do Partido Pantera Negra

 

 

                                         Primeiro número de The Black Panther
                                

 

O revisionismo, como tendência de decomposição interna do movimento comunista, certamente não começa com a morte de Stalin. Historicamente, ele é o efeito das lutas de classes no interior do campo comunista, na medida em que parte deste campo “revê” e deforma o núcleo do marxismo revolucionário sob influência da ideologia burguesa. No caso específico da URSS, ele se manifestou de maneira cada vez mais clara como consequência da integração do conjunto de quadros técnicos “burgueses” – por seu conteúdo ideológico, estes técnicos cumpriam a função de portadores das relações de produção burguesa e formaram a base da burguesia de Estado dominante na URSS a partir dos anos 1960 – do Estado burocrático tzarista no novo aparelho de Estado soviético, integração exigida pelas necessidades impostas pela devastação das forças produtivas russas durante a guerra civil e a ameaça iminente de uma intervenção internacional anticomunista. Não poderíamos desenvolver uma avaliação destes problemas nos limites deste texto, mas é importante apontar que o problema da burocratização do Estado soviético já era objeto das intervenções de Lênin ao fim da vida, e que ele não poderia, em caso algum, ser reduzido à personalidade de Stalin[14]. Ora, um dos efeitos do desenvolvimento das tendências burocráticas no interior da URSS se referia exatamente à questão nacional.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a política externa da URSS se colocou diante de um impasse. Tendo sobrevivido a, e vencido com grande custo material e humano, uma guerra que foi em parte montada pela burguesia mundial para dar fim à experiência soviética[15], a URSS teve de aceitar um recuo do ponto de vista da política internacional, defendendo uma política de coexistência pacífica e evitando intervir de maneira muito ativa na questão dos países coloniais. Coube aos Partidos Comunistas do chamado Terceiro Mundo retomar um programa de lutas de libertação nacional contando com as próprias forças. Quando, em 1949, a Revolução Chinesa triunfa, o PCCh aparece como um novo exemplo a ser seguido no campo socialista[16]. Esta posição se consolida ainda mais quando, com a morte de Stalin, a fração revisionista no PCUS, liderada por Kruschov, conquista o Estado e inicia uma campanha de demonização da figura de Stalin sob a qual estava a plataforma política da burocracia que permitisse a suspensão dos limites jurídicos e políticos a sua transformação em uma burguesia de Estado. É em resposta ao revisionismo soviético, que conseguiu a adesão de grande parte dos Partidos Comunistas do mundo, que se forma um novo movimento comunista anti-revisionista, no qual a linha do PCCh tem grande prestígio, em especial entre as nações oprimidas.

Como consequência, há, a partir dos anos 1950, uma generalização do maoismo entre as alas radicais do movimento negro comunista nos EUA. Como escrevem Robin Kelley e Betsy Esche, “incontáveis radicais negros da época prezavam de tal maneira a China como a terra onde a liberdade poderia ser obtida, muito mais do que prezavam por Cuba, Gana ou até mesmo Paris (de maio de 1968)” (KELLEY & ESCHE, 2018, p. 13)[17]. É nesta conjuntura que um grupo de jovens estudantes pretos de Ohio se reúne para fundar o Revolutionary Action Movement (RAM). O RAM teve uma existência relativamente breve, entre 1962 e 1969, e limitou suas atividades principalmente ao movimento estudantil. No entanto, se apoiando nas elaborações anteriores de Harry Haywood, o RAM coloca o problema de uma síntese entre as teorias revolucionárias de Marx, Lênin e Mao e do legado militante de Malcolm X. De todas as variantes do movimento de luta pelos direitos civis e das formas de resistência pela autonomia do povo preto existentes nos EUA (e em ruptura com linha política dominante nestes movimentos), Malcom X certamente é o elemento mais radical. A grandeza de Malcolm X é, sobretudo, ter defendido de maneira consistente a conexão das lutas anticapitalista e antirracista, por um lado, e ter apontado para a necessidade da autodefesa armada do povo preto, por outro. Ainda que vindo de uma organização ligada a uma forma de nacionalismo religioso e chauvinista, a Nação do Islã – a mesma organização responsável por seu assassinato depois de sua ruptura com ela, possivelmente em colaboração com o os aparelhos de repressão Estado norte-americano –, Malcolm X desenvolve ao fim da vida uma posição universalista e internacionalista, tendo colaborado em determinados momentos de sua trajetória com organizações revolucionárias, em especial o RAM[18]. Recuperando as teses de Haywood sobre a população negra como uma nacionalidade oprimida no interior do território dos EUA, o RAM afirmava que ela é uma verdadeira colônia interna, ao mesmo tempo em que colocava a sua luta de libertação nacional em comunicação direta com o internacionalismo proletário de linha maoista. O RAM declarava que

Somos nacionalistas pretos revolucionários, não nos baseando na ideia de uma superioridade nacional, mas lutando por justiça e libertação para todos os povos oprimidos do mundo. (...) Não pode há ver liberdade enquanto o povo preto for oprimido e os povos da África, Ásia e América Latina forem oprimidos pelo imperialismo ianque e o neocolonialismo. Depois de quatrocentos anos de opressão, percebemos que a escravidão, o racismo e o imperialismo estão todos interligados e que a liberdade e a justiça para todos não podem coexistir pacificamente com o imperialismo. (cit. em BLOOM & MARTIN, 2016, p. 32)

A experiência do RAM foi importante sobretudo pela formação de uma nova geração de militantes comunistas pretos desde uma posição anti-revisionista e orientada pela linha do PCCh. Em especial, pelo início da formação política de Huey P. Newton e Bobby Seale, os fundadores do BPP. É com eles que todas as teses comunistas anteriores sobres a questão negra nos EUA se tornam verdadeiras, porque é com eles que elas se tornam concretas. E não apenas porque Newton e Seale as aplicaram, mas porque, para aplica-las, foi preciso desenvolvê-las, toda aplicação correta de uma linha revolucionária sendo sempre uma aplicação criativa, criação que está diretamente ligada a seus nomes.

A situação concreta em que Newton e Seale se encontravam em 1960 era bastante diferente daquele em que Harry Haywood havia elaborado suas teses, ao fim dos anos 1920. A principal causa desta transformação foi a Grande Migração, fenômeno em que a população afro-americana se deslocou massivamente para os estados do norte e do oeste, fugindo da violência e em busca de melhores condições de vida e partir de 1916, mas especialmente intenso a partir do início dos anos 1940. Em 1970, a população negra do Black Belt era de 50% do total nacional (em contraste com os 90% do início do século XX), com os outros 50% habitando os estados do norte e oeste, enquanto entre a população habitante nos estados do sul se tornou em mais de 80% urbanizada (em contraste com apenas 20% no início do século XX). O problema a resolver era, portanto, o da mobilização de uma luta anticolonial de novo tipo depois desta recomposição demográfica e econômica em que as comunidades e guetos nas periferias das grandes cidades passavam a ser o cenário principal das lutas de massas do povo preto, em que as massas pretas haviam passado em algumas décadas de uma composição camponesa submetida a formas semi-servis a uma composição de exército industrial de reserva urbano. Todas as grandes invenções revolucionárias do Partido Pantera Negra são, ao menos em parte, uma resposta a essa recomposição das lutas de classes e pela libertação do povo preto no interior dos EUA.

Em outubro de 1966, em Oakland, Califórnia, Newton e Seale, depois de uma trajetória de juventude pelo movimento negro e do contato com o RAM, fundam o BPP. No início do Partido os primeiros convidados por Newton e Seale a compor seus quadros eram poucos, todos jovens radicais pretos de marcada tendência comunista e dispostos a superar os limites práticos do movimento de luta pelos direitos civis. E ainda que Newton tenha feito questão de dividir os créditos pela iniciativa na fundação e desenvolvimento do Partido com Seale, a verdade é que o principal ator e formulador teórico do Partido era Huey Newton[19].

O primeiro passo era dar ao Partido o seu programa. O Programa de Dez Pontos do BPP exprimia as demandas de massas das comunidades negras dos EUA, tal como Newton e Seale conheciam diretamente. Resultado da aplicação de uma verdadeira linha de massas, o Programa de Dez Pontos, publicado ainda em outubro de 1966, sistematizava estas demandas em um programa mínimo para o Partido na forma de respostas às questões O que queremos? No que acreditamos? O Programa afirmava:

 

1.      Queremos liberdade. Queremos o poder para determinar o destino de nossa comunidade negra.

2.      Queremos pleno emprego para o nosso povo.

3.      Queremos um fim ao roubo de nossa comunidade negra pelo homem branco.

4.      Queremos habitações decentes, adequadas para abrigar seres humanos;

5.      Queremos uma educação para o nosso povo que exponha a verdadeira natureza desta sociedade americana decadente. Queremos uma educação que nos ensine nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual.

6.      Queremos que todo homem preto seja liberado do serviço militar.

7.      Queremos o fim imediato da VIOLÊNCIA POLICIAL e do ASSASINATO do povo preto.

8.      Queremos liberdade para todos os homens pretos presos em prisões e cadeias federais, estaduais, distritais ou municipais.

9.      Queremos que todas as pessoas pretas em juízo sejam julgadas em corte por um juiz de seu grupo de pares ou por pessoas de sua comunidade preta, como é definido pela Constituição dos Estados Unidos.

10.  Queremos terra, habitação, educação, vestimentas, justiça e paz. E como nosso objetivo político maior, que um plebiscito supervisionado pelas Nações Unidas seja realizado em toda a colônia preta, em que apenas os colonizados pretos possam participar, para determinar o desejo do povo preto quanto a seu destino nacional. (FONER (ed.), 1970, p. 2-4)

Este programa tinha o objetivo de circular entre as massas negras nas comunidades e guetos urbanos, servindo como ferramenta de mobilização e de informação sobre os objetivos imediatos do Partido. Ele foi publicado junto das regras do Partido, dos oito pontos de atenção e das três regras de disciplina, inspirados fundamentalmente na linha maoista sobre o comportamento esperado dos militantes tanto no interior do Partido quanto nas relações com as massas e adaptadas à realidade da conduta de massas entre as comunidades negras[20].

Depois de uma campanha de arrecadação de fundos, em parte com venda de cópias das Citações do Presidente Mao Tsé-Tung, o Partido adquire suas primeiras armas de fogo. Newton havia estudado sistematicamente o código penal californiano, e sabia que a posse de armas era permitida pela legislação estadual, o seu porte sendo também permitido desde que as armas não estivessem ocultadas. Entendendo que a violência policial racista era a contradição principal enfrentada pela comunidade negra, Newton encontrou nesta brecha jurídica a maneira de intervir na contradição. Foi assim que o Partido desenvolveu o programa de vigilância armada das ações policiais pelo qual ficou tão conhecido. Quando uma operação policial acontecia nas comunidades negras, os membros do Partido apareciam armados, com as armas carregadas, câmeras, gravadores e códigos legais, mantendo a distância juridicamente permitida dos policiais, enquanto lançavam a palavra de ordem de que a lei estadual permitia que os cidadãos observassem batidas e ações policiais. A prática da autodefesa foi elevada a um novo nível com as táticas do BPP. Quando, em abril de 1967, um jovem preto de 22 anos chamado Denzil Dowell foi assassinado por um policial, seus familiares acionaram o Partido depois que a polícia local afirmou que a execução havia sido justificada. O Partido lançou sua própria investigação independente e ocupou o local do crime com vinte militantes armados posicionados nas esquinas do ponto em que o jovem foi assassinado. Concluídas as investigações, o Partido questionou a versão da polícia e se mobilizou para um ato diante da delegacia local denunciando a execução. Como, mais tarde, disse Seale sobre estes acontecimentos “Estávamos ensinando ao povo que morreríamos por ele. Essa sempre foi a posição que tivemos com o irmão Huey P. Newton” (cit. em ABU-JAMAL, p. 43). A resposta do Estado ianque foi a mobilização jurídica para restringir o porte de armas em público já no início de 1967, ocasião em que Newton declara abertamente o direito e a necessidade de que as comunidades negras organizem sua autodefesa contra a política armada racista dos EUA, e estabelece que este direito é também o direito de autodefesa dos países coloniais e semicoloniais contra agressões das potências imperialistas. Mais do que isso, o direito à autodefesa dos povos oprimidos era ampliado ao limite de colocar a necessidade de uma destruição da máquina militar do imperialismo estadunidense pelo povo preto.

 

(...) Enquanto as engrenagens da máquina de guerra imperialista estiverem girando, não existe país que possa derrotar este monstro do Ocidente. Acreditamos que o povo preto na América é o único povo que pode libertar o mundo, romper a sujeição do colonialismo e destruir a máquina de guerra. O povo preto que está na máquina pode fazer com que ela pare de funcionar. Ele pode, em razão da sua intimidade com o mecanismo, destruir o dispositivo que está escravizando o mundo.

(...) O povo preto deve agora se mobilizar, desde as suas bases, atravessando os círculos perfumados da burguesia preta para conquistar por quaisquer meios necessários uma parte proporcional do poder investido e recolhido pela estrutura da América. Devemos nos organizar e unir para combater por uma resistência prolongada a força brutal diariamente usada contra nós. A estrutura de poder depende do uso da força para a retaliação. É por isso que criminalizaram o ensino da guerra de guerrilhas. É por isso que querem o povo desarmado.

Os cães opressores racistas temem o povo armado; eles temem mais do que tudo o povo preto armado e a ideologia do Partido Pantera Negra para a Autodefesa. (...) Apenas com o poder das armas as massas prestas podem deter o terror e a brutalidade voltados contra elas pela estrutura racista do poder armado; e em certo sentido é apenas com o poder das armas que todo o mundo pode ser transformado no paraíso terreno sonhado pelos povos desde os tempos mais antigos. Um praticante de sucesso da arte e da ciência da libertação nacional e da autodefesa, o irmão Mao Tsé-Tung, colocou as coisas dessa maneira: “Defendemos a abolição da guerra, não queremos a guerra; mas a guerra só pode ser abolida pela guerra, e para nos livrarmos das armas é preciso pegar em armas”. (NEWTON, 1972, p. 85-86)

 

A defesa da autodefesa mostrou às comunidades negras, pela intervenção do Partido contra a opressão direta do Estado norte-americano, a sua posição de vanguarda na luta das massas pretas pela libertação. Mais do que isso, a consolidação da linha revolucionária entre o povo preto, a necessidade de educar as massas e a exigência de formas de solidariedade coletiva levaram o Partido ao desenvolvimento de seus importantes programas comunitários de sobrevivência. Na verdade, os programas de sobrevivência constituíam o núcleo da tática do Partido, a autodefesa sendo o principal deles, e são os programas de sobrevivência que explicam a sistematização do Programa de Dez Pontos.

 

Um Programa de Dez Pontos não é revolucionário por si mesmo, nem é reformista. Ele é um programa de sobrevivência. Nós, o povo, somos ameaçados com o genocídio porque o racismo e o fascismo são desenfreados nesse país e pelo mundo. E o círculo dominante na América do Norte é o responsável. Pretendemos mudar tudo isto, e para mudar isto deve haver uma transformação total. Mas até que possamos conquistar esta transformação total, devemos existir. Para existir, devemos sobreviver; portanto, precisamos de um kit de sobrevivência: o Programa de Dez Pontos. É necessário que nossas crianças cresçam saudáveis e com mentes funcionais e criativas. Elas não podem fazer isso se não tiverem a nutrição adequada. É por isso que temos um programa de café da manhã para as crianças. Também temos programas de saúde comunitários. Temos um programa de ônibus. Nós o chamamos de “O ônibus para pais e parentes de presidiários”. Sabemos que o regime fascista que opera nos presídios por toda a América gostaria de fazer todas as suas deslealdades no escuro. Mas se levarmos os parentes, pais e amigos para os presídios, podemos expor a deslealdade dos fascistas. Isso também é um programa de sobrevivência.

Não devemos encarar nossos programas de sobrevivência como uma resposta para todo o problema da opressão. Não afirmamos nem mesmo que ele é um programa revolucionário. Revoluções são feitas com coisas mais pesadas. Mas dizemos que se o povo não estiver aqui, a revolução não pode ser feita, porque o povo e apenas o povo faz as revoluções. (NEWTON, 1972, p. 20)

            É crucial, para compreender a estratégia do BPP, entender a função exata dos programas comunitários de sobrevivência.

            Todos esses programas satisfazem necessidades profundas da comunidade, mas não são a solução de nossos problemas. É por isso que os chamamos de programas de sobrevivência, ou seja, de sobrevivência até a revolução. (...) Assim, os programas de sobrevivência não são respostas ou soluções, mas eles irão nos ajudar a organizar a comunidade ao redor de uma análise e uma compreensão corretas da sua situação. Quando a consciência e a compreensão forem elevadas a um alto nível, então a comunidade irá conquistar o tempo e se libertar da bota dos seus opressores. (NEWTON, 1972, p. 104)

O Programa de Café da Manhã Gratuito para Crianças começou na seção de Seatle em 1968, com o apoio de pequenos comerciantes das próprias comunidades para o fornecimento de alimentos, com a preparação e distribuição dos alimentos ficando sob a responsabilidade dos militantes do Partido. Com seu sucesso, ele foi ampliado para uma escala nacional no ano de 1969. Além deste e do programa comunitário de autodefesa e vigilância policial, o Partido coordenou uma série de outros programas com o mesmo objetivo: o Serviço de Notícias Intercomunitárias, as Escolas de Libertação – nas quais toda uma nova geração de intelectuais pretos foi educada –, as Clínicas de Saúde e Pesquisa Médica Gratuitas, o Programa de Vestimentas Gratuitas, o Programa de Ônibus Gratuitos para as Prisões, o Programa de Idosos Contra um Ambiente Hostil, a Fundação de Pesquisa Sobre Anemia Falciforme – forma de anemia que atinge particularmente a população preta –, o Programa Cooperativo de Habitações Gratuitas, o Programa de Calçados Gratuitos, os Serviços de Ambulância Gratuitos, os Programas de Alimentação Gratuita, e os Programas de Manutenção Doméstica[21]. Em alguns destes programas, como o de calçados gratuitos, os próprios membros do partido produziam os bens distribuídos e forma cooperativa. Por fim, todos os programas de sobrevivência do Partido, as denúncias dos ataques do Estado imperialista dos EUA contra a comunidade negra e os países coloniais e semicoloniais, e, sobretudo, a linha política do Partido e suas atividades de agitação e propaganda eram apresentados no jornal The Black Panther, vendido em escala nacional e ilustrado pelo grande artista Emory Douglas.

Os programas comunitários foram, como apontamos, respostas criativas para uma grande transformação na composição nacional e de classe relativa à questão negra nos EUA. Nos anos 1930, quando Harry Haywood elabora suas teses, a análise da situação do povo preto como uma nação oprimida interna aos EUA poderia ter seus desenvolvimentos táticos e estratégicos colocados nas linhas gerais das lutas de libertação nacional nos chamado países do Terceiro Mundo compostos de uma população de maioria camponesa: o proletariado organizado em seu Partido Comunista como a força dirigente da revolução se apoiando em uma força principal de composição camponesa, consolidando uma aliança operária e camponesa com o programa de uma revolução democrática e o desenvolvimento de uma reforma agrária. No entanto, com as mudanças resultantes da Grande Migração[22] a situação assumia uma figura completamente distinta. O povo preto passava a ser, como vimos, uma população urbana em sua maioria absoluta, compondo, na sua menor parte, um novo exército industrial de reserva urbano e, em menor parte, uma forma de lumpenproletariado. É importante notar, no entanto, que a composição e os comportamentos coletivos do lumpenproletariado podem ter um papel diferente em certos países coloniais e semicoloniais do que têm nos países imperialistas. O próprio Mao, na Análise das classes na sociedade chinesa, já havia apontado sobre esta classe que, sendo na situação dada, composta de camponeses que perderam suas terras e de operários desempregados, “são os elementos mais instáveis da sociedade” e que a posição quanto ao lumpenproletariado “constitui um dos problemas difíceis que se apresentam à China. Tais indivíduos são capazes de lutar com a maior coragem, mas são propensos a ações destrutivas. Conduzidos de maneira correta, podem converter-se numa força revolucionária” (TSÉ-TUNG, 2011, p. 12-13. Grifo nosso). Da mesma maneira, analisando a situação concreta do colonialismo no continente africano, Fanon apontará como, ali, o lumpenproletariado compõe uma classe de camponeses expropriados capazes de identificar de maneira instintiva o colonizador como seu inimigo imediato, mas aponta também seu caráter ambíguo e destrutivo, que pode se converter em uma arma nas mãos do colonialismo

 

O colonialismo encontrará no lumpenproletariado uma massa de manobra considerável. Igualmente, todo movimento de libertação nacional deve dar o máximo de atenção a este lumpenproletariado. Este responde sempre ao chamado de insurreição, mas se a insurreição acredita poder se desenvolver o ignorando, o lumpenproletariado, esta massa de famintos e desclassificados, se lançará na luta armada e participará no conflito aos lados, desta vez, do opressor. O opressor, que não perde nunca a oportunidade de fazer os negros lutarem entre si, utilizará então com uma rara felicidade a inconsciência e a ignorância que são as marcas do lumpenproletariado. Esta reserva humana disponível, se ela não for imediatamente organizada pela insurreição, se reencontrará como mercenários ao lado das tropas colonialistas (FANON, 2011, p. 531. Grifo nosso).

É exatamente neste ponto que se coloca a elaboração do BPP. Como escreverá mais tarde Bobby Seale

Huey entendia o sentido do que Fanon disse sobre organizar o lumpenproletariado primeiro, porque Fanon explicitamente apontou que se (...) a organização não se liga ao lumpenproletariado e estabelece as bases para organizar o irmão que estão cafetinando, ao irmão que está na violência, o desempregado, o abandonado, o irmão que está assaltando bancos, que não é politicamente consciente, e ‘é isso que significa o lumpenproletariado’, se você não tentar se relacionar com esses caras, a estrutura de poder vai utilizar esses caras contra você. (SEALE, 1970, p. 21)

Nesta situação – e é central notar que se tratava de uma conjuntura anterior à política imperialista de Guerra às Drogas e de militarização e expansão dos grupos armados que operam o narcotráfico pelas periferias, fenômenos que foram, como veremos, em parte uma resposta às atividades do BPP – era importante para o Partido se aproximar destas forças sociais, vinculá-las à organização de massas e subordiná-las a uma linha revolucionária. Mas ao mesmo tempo em que o lumpenproletariado deveria ser subordinado à linha do Partido, tratava-se sobretudo de alcançar a maioria da população preta que não havia se deslocado para esta posição de classe, mas tampouco formava parte do proletariado regular. A base social do Partido era, sobretudo, o exército industrial de reserva formado pelas massas negras ligadas a empregos intermitentes e ao subemprego e os programas comunitários de sobrevivência eram a principal ferramenta criadas pelo Partido para mobilizar e organizar o povo preto que se encontrava nestas situações de classe. A análise de Newton o leva a afirmar que a tendência dominante no caso específico da economia estadunidense nos anos 1960 era o desenvolvimento da automação e, com isso, o deslocamento de parcelas cada vez maiores do proletariado para o exército industrial de reserva e para o lumpenproletariado. Daí a necessidade de encontrar nestes setores as forças principais com as quais o Partido deveria construir uma aliança para o desenvolvimento de uma luta de libertação nacional.

Deve-se, aliás, afirmar rigorosamente o caráter revolucionário e a linha comunista do BPP. É sintomático que seja preciso fazê-lo. A popularidade do Partido entre as massas e os efeitos diretos de sua luta política no interior da maior potência imperialista do mundo impuseram, como de costume, a necessidade de deformar a imagem do BPP. No entanto, sua visibilidade e sua posição no coração dos EUA impuseram formas específicas à campanha de difamação imperialista: além da deformação anticomunista usual, foi preciso pacificar a imagem do Partido. Não é raro que se reduza a linha do Partido a uma forma simples de nacionalismo preto, reduzindo sua ideologia a uma defesa da autonomia territorial e econômica nas grandes periferias urbanas e na região do Black Belt. Há até mesmo aqueles que pretendem fazer do Partido uma organização nacionalista cultural, cujo programa teria como ponto central o retorno a uma cultura africana mítica e a recuperação de uma autonomia e uma ordem comunitária “tradicionais”, esta formulação típica da ideologia fascista – especialmente os que hoje traficam com o nome do Partido e se aventuraram a fundar um “Novo Partido Pantera Negra”, mantendo por trás das imagens do BPP a linha política de uma organização nacionalista reacionária em tudo oposta à linha de Huey Newton e do Comitê Central do Partido Pantera Negra, a Nação do Islã, organização, como apontamos, responsável pelo assassinato de Malcolm X[23].

Em sua fundação, em 1966, é pelo menos parcialmente verdadeiro que o BPP era um partido nacionalista preto, na medida em que assumia a estratégia da luta de libertação nacional (tal como recuperada e reelaborada por Newton e Seale a partir dos trabalhos de Marx, Lênin, Mao, Fanon e Malcolm X). No entanto, quase imediatamente o Partido evolui para a posição que chamava de de nacionalismo revolucionário, entendido como um nacionalismo que combinava a luta de libertação nacional do povo preto como a luta pelo socialismo. Especialmente porque, já nos anos 1960, o BPP tinha clareza da impossibilidade da coexistência de uma nação preta autônoma com o Estado imperialista dos EUA, e que a luta de libertação nacional do povo preto só poderia se concretizar com o desenvolvimento de uma revolução socialista nos EUA[24]. Newton traça, assim, uma linha de demarcação clara entre dois tipos de nacionalismo:

Existem dois tipos de nacionalismo, o nacionalismo revolucionário e o nacionalismo reacionário. O nacionalismo revolucionário depende anteriormente de uma revolução popular tendo como objetivo final o povo no poder. Portanto, para ser um nacionalista revolucionário você tem necessariamente que ser um socialista. Se você é um nacionalista reacionário você não é um socialista e seu objetivo final é a opressão do povo.

O nacionalismo cultural, ou nacionalismo de costela de porco, como eu o chamo às vezes, é basicamente um problema sobre ter a perspectiva política errada. Ele parece ser uma reação, ao invés de responder à opressão política. Os nacionalistas culturais estão preocupados com o retorno à velha cultura africana e, com isso, com a recuperação da sua identidade e da sua liberdade. Em outras palavras, eles pensam que a cultura africana irá trazer automaticamente a liberdade política. Em muitos momentos os nacionalistas culturais mostram ser, na realidade, nacionalistas reacionárias.

Papa Doc no Haiti é um excelente exemplo de nacionalista reacionário. Ele oprime o povo, mas ele defende a cultura africana. Ele é contra tudo o que não é preto, o que superficialmente parece muito bom, mas para ele isso é apenas para iludir o povo. Ele apenas expulsou os racistas e os substitui por ele mesmo como opressor. Muitos nacionalistas nesse país têm os mesmos objetivos. (cit. em. FONER (ed.), 1970 p. 50)[25]

Esta posição nacionalista revolucionária, e, portanto, socialista, exige necessariamente o internacionalismo proletário. Como escreveu certa vez a militante Connie Mathews, “Nossa luta é uma luta mundial”, exigindo a solidariedade revolucionária entre os povos em luta na Ásia, África e América Latina[26]. Na verdade, os membros do Comitê Central do Partido Pantera Negra sempre afirmaram o caráter marxista-leninista do Partido. No artigo A ideologia do Partido Pantera Negra, o Chefe de Pessoal David Hilliard afirma claramente que “A ideologia do Partido Pantera Negra é a experiência histórica do povo preto da América traduzida através do marxismo-leninismo” (cit. em FONER (ed.), 1970, p. 122), do mesmo modo que Huey Newton afirma publicamente no Discurso no Boston College que “O Partido Pantera Negra é um Partido marxista-leninista porque seguimos o método dialético e integramos a teoria e a prática.” (NEWTON, 1972, p. 25), e o Ministro da Informação Eldridge Cleaver em sua Entrevista do exílio afirma, respondendo à acusação de “dogmatismo” da parte de Stokely Chamicael, que “ele está se referindo ao fato de que somos um Partido marxista-leninista” (cit. em FONER (ed.), 1970, p. 110). E este marxismo-leninismo era aquele do movimento anti-revisionista, em especial o do campo maoista. Não só a prática do Partido e os textos de Newton o demonstram amplamente, como esta era a orientação dos próprios cursos de formação política do Partido, em que

cada membro deveria estudar atentamente uma dúzia de livros – seis de ou sobre Mao Tsé-Tung, três de ou sobre Malcolm X, e um cada de Huey Newton, Frantz Fanon e Karl Marx. Em contrapartida, cada membro tinha que ajudar outro pantera a entender estes textos. A lista de leitura refletia a adesão cada vez mais explícita dos panteras à teoria e a ideologia marxista e, em especial, maoista. (BLOOM & MARTIN, 2016, p. 232)[27]

Esta adesão ao marxismo-leninismo e ao maoismo não era apenas uma afirmação teórica, mas, como indicou Newton, se sustentava na integração da teoria e da prática. Como vimos, o Partido aplicou de maneira criativa o marxismo-leninismo e o maoismo na construção de novas táticas e formas de mobilização, pela aplicação de uma linha de massas, para o desenvolvimento de uma luta de libertação nacional do povo preto nos EUA. Mas esta luta era inseparável do desenvolvimento de uma nova Revolução Americana – e o Partido não apenas afirmou isto, como lutou para construir objetivamente esta revolução. E para isso, mais uma vez seguindo a linha maoista, o Partido iniciou a construção de duas novas ferramentas.

Em 1969, quando o Partido percebe que o campo amplo da Nova Esquerda estadunidense o reconhece cada vez mais como a principal força dirigente das lutas de classes, o Partido organiza uma Conferência Revolucionária para uma Frente Única Contra o Fascismo[28], convocando todo campo da esquerda a compor uma mobilização antifascista ampla e a desenvolver um programa que respondesse à demanda de todos os trabalhadores e oprimidos dos EUA. A campanha para a composição da Frente tinha como uma de suas motivações principais a prisão de Huey Newton, preso desde 1967 sob a acusação de ter matado um policial depois que uma abordagem terminou em um tiroteio com Newton e dois policiais baleados, um deles tendo sido morto. A acusação nunca foi comprovada, mas Newton foi mantido preso durante três anos, enquanto o Partido mobilizava uma ampla campanha Free Huey! por sua liberdade. Os objetivos táticos iniciais da Frente eram a defesa do controle comunitário da polícia e da autodefesa comunitária, a libertação de todos os presos políticos e a saída dos militares dos campi universitários, em muitas partes ocupados em razão dos protestos contra a Guerra do Vietnã. A Conferência contou com a participação de entre quatro e cinco mil jovens militantes de diversas etnias, e de mais de trezentas organizações da esquerda radical estadunidense, entre elas os Young Lords, organização marxista-leninista pela independência de Porto Rico que se desenvolveu a partir de uma gangue de rua, o Partido Guarda Vermelho, organização maoista de juventude sino-americana, o movimento universitário Estudantes por uma Sociedade Democrática, o anti-revisionista Partido do Trabalho Progressista, uma série de grupos feministas e membros à esquerda do PCUSA[29]. É nesse contexto, aliás, que o Partido avança em sua defesa dos movimentos de libertação das mulheres e dos homossexuais, e que levará Newton a escrever uma crítica contundente do machismo e da homofobia ao sair da prisão em 1970[30]. A primeira orientação da Conferência foi a construção dos Comitês Nacionais para Combater o Fascismo, operando na prática sob a direção do BPP, mas aberto para todas trabalhadores e oprimidos de todas as etnias. Os Comitês atuaram na organização de campanhas para a libertação de presos políticos e nas discussões sobre a organização da autodefesa comunitária, mas se dispersaram rapidamente com cisão e o enfraquecimento do Partido a partir de 1971.

A segunda ferramenta construída pelo Partido para desenvolver a Revolução Americana foi o Exército Negro de Libertação (Black Liberation Army/BLA). O apagamento da centralidade do BLA e de sua construção são parte importante da operação de pacificação da política do Partido Pantera Negra. Na verdade, o exército deveria compor a força militar principal no desenvolvimento da Revolução, cabendo aos grupos comunitários de autodefesa o papel de forças auxiliares. Os planos iniciais para a organização do BLA envolviam a organização de veteranos pretos retornados da Guerra do Vietnã para combater o imperialismo desde o interior do território dos EUA. Os esforços principais para a construção do BLA e o treinamento das tropas foram atribuídos ao lendário Geronimo “Ji-Jaga” Pratt, veterano exército ianque, que em 1970 foi encarregado de entrar para a clandestinidade e montar um acampamento de treinamento secreto no Texas para iniciar a formação das tropas[31]. Em uma entrevista realizada no exílio, em 1969, o Ministro da Informação Eldridge Cleaver, com sua precipitação habitual, apontou parte do programa de mobilização para uma guerra revolucionária.

[A Frente Única Contra o Fascismo] é uma movimentação muito importante nesse sentido, mas há outra frente que eu acho que deve ser criada, e isso é uma coisa em que tenho trabalhado e em que eu pretenso continuar trabalhando, e é uma coisa que estamos chamando de Frente de Libertação Norte Americana. Eu penso que é o momento certo, porque muitas pessoas vêm a situação com que nos deparamos como uma situação em que a política foi transformada em guerra, e não tem fundamento continuarmos nos enganando; o que temos que fazer é lutar. Temos terreno lá para lutar. Muitas pessoas pensam que a luta armada feita nas montanhas de Cuba ou no Vietnã são uma coisa, e que isso não poderia acontecer nos Estados Unidos. Mas os Estados Unidos têm mais montanhas do que todas essas outras zonas, eles têm a vantagem de áreas montanhosas, e uma situação altamente organizada e tem zonas rurais. Eles são tão grandes que as forças do governo seriam forçadas a se distribuir de maneira muito escassa, ao mesmo tempo em que a insatisfação nas fileiras do Exército dos Estados Unidos está em no ponto mais alto. Os fortes e prisões militares estão abarrotados de gente que desertou e não quer lutar no Vietnã. E eu penso que as contradições que surgiram nas fileiras do Exército vão continuar a crescer, e mais ainda quando eles finalmente tiverem se voltado contra o povo americano. (cit. em FONER (ed.), 1970, p. 117)

Tendo realizado uma série de ações armadas em seus momentos iniciais, como a expropriação de bancos e a execução de membros das forças policiais conhecidos por sua violência contra a população preta, o BLA era composto exclusivamente de membros do Partido. Um relatório do Departamento de Justiça dos EUA chegou a afirmar que o BLA foi responsável por 70 ações armadas nos EUA ente 1970 e 1976[32]. O fato de que sua formação e organização coincidiram parcialmente com o processo de cisão no Partido a partir de 1971 levou a uma série de confusões em relação a sua natureza, mas sua existência como ferramenta construída e organizada pelo Partido a partir do programa de desenvolvimento de uma guerra revolucionária nos EUA pode ser compreendida tanto a partir das posições dos próprios textos citados dos membros do Comitê Central do Partido Pantera Negra quanto a partir das declarações diretas sobre o BLA nas memórias do Partido escritas por Mumia Abu-Jamal. Depois da cisão de 1971, o BLA se afasta do Partido cada vez mais e se alinha com as posições “esquerdistas” de Eldridge Cleaver sobre uma passagem imediata à luta armada direta, se enfraquecendo progressivamente até o início dos anos 1980, em especial a partir de 1972. Em todo caso, o central é que o Partido Pantera Negra deu os primeiros passos concretos na construção das condições objetivas para o desenvolvimento de uma guerra popular revolucionária no interior do território da maior potência imperialista do mundo.

Provando a verdade das palavras de Mao Tsé-Tung, o Partido Pantera Negra mostrou concretamente como a mobilização revolucionária do povo preto nos EUA poderia ser uma das principais armas contra a máquina imperialista mundial. Lutando por sua libertação, o povo preto nos EUA lutava também pelo fim do imperialismo e pela libertação de todos os condenados da Terra. O maligno sistema do colonialismo e do imperialismo surgiu e se consolidou com a escravização dos negros e o tráfico de negros, e ele irá certamente chegar ao fim com a completa emancipação do povo preto.

Conclusão: a guerra contra os panteras e um legado revolucionário

                                 Bobby Seale e Huey Newton
 

 Como não poderia deixar de ser, a ameaça levantada pelo BPP foi violentamente combatida pela maior máquina policial e militar que a humanidade já viu até aqui. Quando o diretor do FBI, J. Edgar Hoover, afirmou que o “Partido Pantera Negra sem dúvida representa a maior ameaça interna à segurança do país”[33] não se tratava de simples paranoia anticomunista. Hoover sabia bem o que dizia. O desenvolvimento de uma linha de massas, através de seus programas comunitários, e o programa concreto para o desenvolvimento de uma luta armada no interior do território estadunidense colocaram, ainda que apenas em uma fase inicial de desenvolvimento, uma ameaça de instabilidade insuportável para o Estado imperialista ianque, sobretudo em um período histórico em que ele encarava uma forte pressão interna da parte de sua população, uma iminente derrota na Guerra do Vietnã e tinha diante de si a URSS e a China popular (ainda que a primeira já seguisse muito claramente o caminho do revisionismo). O Estado ianque lançou uma verdadeira operação de guerra contra o BPP, organizada especialmente a partir do FBI. Do encarceramento de seus dirigentes e principais militantes – em certos casos com peças de acusação tão mal montadas e inconsistentes que mesmo o sistema judiciário estadunidense não pôde sustenta-las, mas em outros levando a níveis de brutalidade no encarceramento raramente vistos, como o do grande Mumia Abu-Jamal, preso à quase 40 anos e repetidamente colocado no corredor da morte – ao assassinato de muitos de seus membros mais importantes – como o do imortal Fred Hampton – o BPP se viu atacado em todas as frentes possíveis.

No entanto, como no processo de desenvolvimento de todos os fenômenos, o que levou à destruição do BPP foram principalmente suas contradições internas. O papel desempenhado pela imensa repressão do Estado imperialista ianque intensificou e, de fato, foi determinado por estas contradições. Sua análise sistemática exigiria outro estudo. Devemos apontar, no entanto, que os principais limites do Partido foram, por um lado, a entrada desregrada de novos membros com uma formação ideológica inconsistente e, por outro, a incapacidade do desenvolvimento de métodos corretos de luta de duas linhas no interior do Partido. O primeiro limite já era um erro em 1967, mas com a prisão de Newton e seu consequente afastamento da direção do Partido, o processo leva a uma situação incontrolável que exigiria o grande desgaste posterior de uma série de depurações nas fileiras do BPP, além de uma série de erros na condução da linha de massas nas seções locais. Quanto ao segundo limite, talvez o mais grave, ainda que Partido formalmente conduzisse suas discussões segundo os princípios da crítica e da autocrítica de seus membros em debates amplos e democráticos, na realidade estas práticas encontravam pouco espaço no interior do Partido. As lutas de duas linhas, nas quais as posições ideológicas proletárias e burguesas se enfrentam no Partido – seja de maneira consciente, seja de maneira inconsciente – devem ser desenvolvidas de acordo com um método correto, capaz de analisar as questões, permitindo à linha correta se elaborar de maneira clara e consistente, mas também a identificação da linha errada de maneira que os que a defendem tenham a possibilidade de se retificar. Um partido comunista só pode manter uma unidade viva na medida em que amadurece desta maneira pela retificação, mantendo os métodos de depuração apenas no caso dos indivíduos que defendam de maneira incorrigível uma linha burguesa.

Ora, foi exatamente através desta fragilidade que o programa de contra inteligência ilegal montado pelo FBI, o COINTELPRO, mais causou danos ao Partido. Entre o encarceramento e o assassinato de militantes chave do Partido e a ação de infiltrados do FBI no interior do Partido, o COINTELPRO iniciou uma grande difusão de correspondências falsas nas quais membros do Partido supostamente atacavam uns aos outros ou denunciavam supostas conspirações no Partido. Da mesma maneira que Huey Newton era alimentado com correspondências falsas que, anonimamente ou em nome de outros membros do Partido, denunciavam que Eldridge Cleaver estava planejando seu assassinato para assumir a direção do Partido, Eldridge Cleaver, exilado na Argélia, era alimentado com correspondências falsas que denunciavam inúmeros supostos erros de direção de Huey Newton que estariam levando o Partido à fragmentação[34]. Essa propaganda falsa do COINTELPRO teve um efeito devastador no meio da tensão produzida pela onda de repressão do Estado ianque e do assassinato dos membros do Partido. Com suas posições “esquerdistas”, que exigiam a passagem imediata à luta armada aberta, e seu voluntarismo, Eldridge Cleaver usa de sua influência dentro do Partido para mobilizar uma cisão entre o BPP e o BLA. Por outro lado, Newton conduz uma série de depurações equivocadas no Partido, chegando mesmo a expulsar Geronimo Ji-Jaga; quando o Serviço de Segurança Central ataca o principal campo de treinamento do BLA, foi seguindo um mensageiro do Partido enviado por Newton para questionar Geronimo Ji-Jaga. A partir de 1972, o BLA começa a se fragmentar, e sem uma direção consequente se isola cada vez mais das massas. A Frente Única é esvaziada pelos conflitos internos do Partido, na mesma metida em que o próprio Partido se enfraquece cada vez mais. O próprio Newton cede à pressão psicológica gerada pela situação e retorna à dependência química que o levou a um caminho cada vez mais confuso, passando por uma transformação que é, em certo sentido, uma verdadeira morte em vida.

Ironicamente, o último grande movimento do Estado imperialista ianque em sua guerra contra os panteras é também o movimento de abertura da política de Guerra às Drogas, começada em 1971. Quando, recentemente, um jornalista norte-americano revelou que um assessor de Nixon declarou que tanto Nixon como o aparelho de repressão do Estado ianque tinham perfeita clareza de que a Guerra às Drogas era um pretexto para uma verdadeira intervenção militar nas comunidades negras dos EUA, esta notícia pareceu menos chocante para os que conheciam a trajetória do BPP[35]. Ao mesmo tempo em que o encarceramento da população preta crescia vertiginosamente e o assassinato seletivo de lideranças comunitárias se ampliava, as comunidades negras eram inundadas de narcóticos levando a uma rápida militarização das periferias e à acelerada reacionarização do lumpenproletariado que o Partido buscara controlar com sua linha política, sabendo que ele poderia ser mobilizado pela reação. A história, aliás, da militarização das periferias em todo planeta ligada à Guerra às Drogas – que é sempre bom lembrar, produziu o mesmo narcotráfico militarizado que dizia combater[36] – faz parte da história da reação do capitalismo e do imperialismo contra a grande onda de lutas populares dos anos 1960. Essa mesma reação mudou completamente a situação nas periferias dos EUA e, especialmente, dos países do Terceiro Mundo.

Mas na mesma medida em que o Partido Pantera Negra era destruído, ele deixava sementes para o futuro, sementes para a preparação uma nova grande onda de lutas dos povos revolucionários dos países coloniais e semicoloniais, sementes para a recomposição do movimento comunista internacional. As lições do Partido Pantera Negra falam em uma língua curiosamente familiar a todos os povos oprimidos e mais familiar ainda àqueles que entendem que o marxismo-leninismo-maoismo se tornou, hoje, a ferramenta revolucionária dos novos tempos. Cabe a eles recuperarem criticamente estas sementes, germiná-las e, com a memória viva e revolucionária de Huey Newton, Bobby Seale, Fred Hampton, Assata Shakur, Afeni Shakur, Geronimo Ji-Jaga, Mumia Abu-Jamal e tantos outros comunistas vivos ou mortos que construíram o Partido Pantera Negra, abrir uma nova sequência revolucionária na história mundial.

 

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[1] Agradecemos especialmente a K. Barreto pelas trocas ao longo dos anos em que pudemos desenvolver uma perspectiva de classe justa sobre o Partido Pantera Negra e o movimento de libertação dos pretos.

[2] Não poderemos desenvolver este ponto detalhadamente neste texto, mas para uma visão geral do desenvolvimento histórico dos EUA desde um ponto de vista popular, ver ZINN, 2015.

[3] Estas formações sociais, aliás, são especialmente complexas, uma vez que a articulação de diversos modos de produção em seu interior é dominada não tanto por um modo de produção estruturado no interior desta mesma formação social, mas por um modo de produção externo e, no caso das colônias modernas dos séculos XVI e XVII, ainda em processo de estruturação. Esta situação complexa, em que um modo de produção exterior dominante organiza a reprodução de outros modos de produção dominados. é uma das formas da subsunção formal de processos de trabalho não-capitalistas ao capital, processo que altera parcialmente estes processos de trabalho na medida em que os integra à acumulação capitalista. É o que Marx nos aponta quando escreve que “como nos mostra o exemplo do trabalho domiciliar moderno, certas formas híbridas são reproduzidas aqui e ali na retaguarda da grande indústria, mesmo que com uma fisionomia completamente altera” (MARX, 2013, p. 579). Para o problema da definição das formações sociais como articulação concreta de modos de produção, ver HARNECKER, 2013, p. 167-174. Para a questão das formações sociais coloniais, ver ASSADOURIAN et alii, 1978, p.  7-16. Para a definição do sentido da “dominação” de um modo de produção e a organização da reprodução dos modos de produção dominados no interior de uma produção social, ver AMIN & VERGOPOULOS, 1977, p. 12-13.

[4] “Assim que os povos cuja produção ainda se move nas formas inferiores do trabalho escravo, da corveia, etc., são arrastados pela produção capitalista e pelo mercado mundial, que faz da venda de seus produtos no exterior o principal interesse, os horrores bárbaros da escravidão, da servidão, etc., são coroados com o horror civilizado do sobretrabalho. Isso explica por que o trabalho dos negros nos estados sulistas da União Americana conservou certo caráter patriarcal, enquanto a produção ainda se voltava sobretudo às necessidades locais imediatas. Mas à medida que a exportação de algodão tornou-se o interesse vital daqueles estados, o sobretrabalho dos negros e, por vezes, o consumo de suas vidas em sete anos de trabalho converteu-se em fator de um sistema calculado e calculista. O objetivo já não era extrair deles uma certa quantidade de produtos úteis. O que importava agora era a produção do próprio mais-valor” (MARX, 2013, p. 310).

[5] As razões para isto, como se sabe, são efeitos estruturais dos próprios processos de colonização e acumulação primitiva: a grande disponibilidade de terras não apropriadas, a escassez de população metropolitana a ser mobilizada como força de trabalho e a alta intensidade do processo de trabalho necessário para a grande monocultura de gêneros de exportação limitam a possibilidade de emprego das formas de trabalho livre nas grandes colônias do período mercantilista. Nestas situações, diante da necessidade de organização da produção nos territórios coloniais, a empresa colonizadora recorreu, entre outros modelos, ao do cultivo da cana-de-açúcar adotado no Chipre pelos genoveses desde o século XV. Com efeito, foi ali que, pela primeira vez, grupos de grandes mercadores, operadores do comércio de longa distância, adquiriram grandes extensões de terras e organizaram nelas a produção de um gênero valorizado pelos mercados europeus. Foi diante dos impasses encontrados para a organização da produção no Chipre que estes mesmos grupos de mercadores recorreram ao mercado de escravos como meio de solucionar o problema da mobilização da força de trabalho. Para todos estes pontos, ver CURTIN, 2005, p. 3-13.

[6] Para uma análise do processo de constituição do tráfico negreiro especialmente no caso do Brasil, ver ALENCASTRO, 2000.

[7] Ver JAMES, 2010, p. 60-63.

[8] Para o papel central atribuído por Marx à escravidão no sistema capitalista mundial, ver igualmente a carta de 28 de dezembro de 1846 à Pavel Annenkov. “A escravidão direta tanto é a base de em que nosso industrialismo atual gira quanto são a maquinaria, o crédito, etc. Sem a escravidão, não haveria algodão, sem algodão não haveria indústria moderna. Foi a escravidão que valorizou as colônias, e foram as colônias que criaram o comércio mundial, e o comércio mundial é a condição necessária para a grande indústria mecanizada. (...) A escravidão é, portanto, uma categoria econômica da maior importância” (MARX & ENGELS, 1982, p. 150-152).

[9] As ênfases são nossas. As posições abolicionistas de Marx são expostas em inúmeras ocasiões tanto em público, em suas obras e artigos, quanto em privado, em suas cartas, assim como sua defesa da igualdade racial de direitos civis (e é importante lembrar que para praticamente todo o campo do abolicionismo burguês do século XIX, Lincoln inclusive, a igualdade de direitos civis pós-abolição não era desejável), expressa em sua adesão ao comunicado da Internacional “Ao povo dos Estados Unidos da América”, em que é dito que “Uma vez que tivemos a honra de expressar simpatia com seu sofrimento, uma palavra de encorajamento por seus esforços e uma congratulação por seus resultados, nos permitam também acrescentar um conselho para o futuro. Que seus cidadãos sejam declarados livres e iguais, sem reservas. Se falharem em lhes atribuir direitos de cidadania enquanto exigem deles deveres de cidadãos, ainda haverá uma luta no futuro que pode mais uma vez manchar seu país com o sangue do povo. (...) Os advertimos então, como irmãos em uma causa comum, a remover todo grilhão dos membros da liberdade, e sua vitória será completa” (cit. em ANDERSON, 2016, p. 113). Como é de se esperar, estas declarações foram menos impressionantes para os críticos do comunismo do que os dois – até onde sabemos, os únicos – comentários racistas registrados nas cartas privadas de Marx. No primeiro, em uma carta a Engels de 30 de julho de 1862, Marx faz referência a uma possível ascendência negra de Lassalle a sua “importunidade é como a de um negro” (“Está agora muito claro para mim – como o formato de sua cabeça e a maneira como seu cabelo crescem também demonstram – que ele é descendente dos negros que acompanharam a fuga de Moisés do Egito (a não ser que sua mãe ou avó paterna tenham procriado com um negro). Agora, esta mistura de judeu e alemão, e por um lado, de uma base negra, por outro lado, teve inevitavelmente de gerar um produto peculiar. A importunidade do companheiro também é como a de um negro” (MARX & ENGELS, 1985, p. 390)). No segundo, em uma infeliz tentativa de humor em carta à filha Eleanor Marx, de 5 de setembro de 1866, Marx associa o futuro genro Paul Lafargue a um “filhote de gorila” (“Minha amada mestra: Eu me curvo ante sua imensidão, quaisquer que sejam as ações que você venha a ter o obséquio de realizar, a do infinitamente pequeno diante do infinitamente grande. As suas cartas nos encantaram, e realmente explodimos de rir lendo a passagem em que você descreve explosão acidental pela exibição do solteirão. Estou sendo maltratado por um filhote de gorila [Paul Lafargue] que mal pode suportar a separação da ratinha de veludo [Laura Marx] que ele colocou na cabeça” (MARX & ENGELS, 1987, p. 315)). Evidentemente, estas posições são, de fato racistas, e devem ser criticadas. No entanto, o que os biógrafos amadores do anticomunismo não fazem – além de não aplicar critérios do mesmo tipo às reuniões de Marcus Garvey com a Klu Klux Klan ou ao escravismo dos “pais fundadores” dos EUA – é, em primeiro lugar, desenvolver uma análise comparativa do problema do racismo na correspondência de Marx. Até onde sabemos, a primeira elaboração de Marx que aborda de maneira tangencial o problema da ideologia racista é um artigo de Marx no Die Presse, de 23 de novembro de 1862, em que escreve que “o irlandês vê no negro um competidor perigoso. Os fazendeiros eficientes em Indiana e Ohio odeiam o negro depois apenas do proprietário de escravos. Para eles, ele é o símbolo da escravidão e do rebaixamento da classe trabalhadora, e a imprensa democrática os ameaça diariamente com uma inundação de seus territórios pelo ‘negro’” (cit. em ANDERSON, 2016, p. 104), sendo posterior, portanto, à carta a Engels sobre Lasalle. O fato de que não é possível encontrar mais referências pejorativas associadas ao termo negro posteriormente é sintomático. Mais ainda, com o desenvolvimento dos estudos de Marx ao fim da vida sobre as formações sociais não-ocidentais, o tom se inverte: em carta à filha Jenny, de 27 de março de 1882, escrita da Argélia, Marx elabora uma comparação em que negros e outros povos não-europeus são percebidos de maneira romântica, como portadores de costumes “poéticos” em contraposição à suposta “civilização” dos povos europeus (“Escreva a Hirsch para me enviar a sua contribuição. Como eu gostaria de ter Johnny [seu neto] aqui em um dia ensolarado com minha cartola mágica; como meu queridinho iria se surpreender com os maures, árabes, berberes, turcos, negros, em uma palavra com esta Babel de costumes (a maior parte deles poéticos) deste mundo oriental, misturados com os ‘civilizados’ franceses, etc., e os entediantes ingleses” (MARX & ENGELS, 1992, p. 225). Mas, mais importante, o anticomunismo coloca a questão de maneira subjetivista, como se os ocasionais desvios biográficos de Marx – e não é desimportante notar que os limiares políticos do antirracismo atuais são também o resultado de um processo histórico de luta desenvolvidas especialmente no século XX – fosse o suficiente para uma condenação do materialismo histórico e do legado teórico de Marx. Essa posição é assumida e exposta com grande clareza por Huey Newton: “Nós às vezes temos problemas porque as pessoas não compreendem a ideologia que Marx e Engels começaram a desenvolver. As pessoas dizem ‘Vocês dizem ser marxistas, mas vocês sabem que Marx era racista?’. Dizemos, ‘Bem, ele provavelmente era racista: ele fez uma declaração uma vez sobre o casamento de uma mulher branca e de um homem negro, e chamou o homem de gorila ou coisa assim. Os marxistas dizem que ele só estava brincando e que essa declaração mostra a proximidade de Marx ao sujeito, mas isso obviamente é bobagem. Então, parece que Marx era racista’. Se você é um marxista, então o racismo de Marx afeta o seu próprio julgamento, porque se você é um marxista então você é alguém que venera Marx e o pensamento de Marx. Lembrem-se, no entanto, que o próprio Marx disse ‘eu não sou um marxista’. Esses marxistas se preocupam com as conclusões às quais Marx chegou com seu método, mas eles jogam fora o próprio método – ficando em uma posição completamente estática. É por isso que a maior parte dos marxistas realmente são materialistas ‘históricos’: eles olham para o passado buscando respostas para o futuro, e isso não funciona. Se você é um materialista dialético, no entanto, o racismo de Marx não importa. Você não acredita nas conclusões de uma pessoa, mas na validade de um modo de pensamento; e nós, no partido, como materialistas dialéticos, reconhecemos Karl Marx como um dos grandes contribuidores para esse modo de pensamento. Se Marx era ou não racista é irrelevante e imaterial em relação à questão de se o método de pensamento que ele ajudou a desenvolver nos mostra ou não verdades sobre os processos no mundo material. E isso é verdadeiro em todas as disciplinas. Em cada disciplina, você encontra pessoas com visões distorcidas e que estão em um nível baixo de consciência, e que, no entanto, têm lampejos de inspiração e produzem ideias que devem ser consideradas” (HILLIARD (ed.), 2002, p. 183-184). Quanto ao uso do termo “marxista”, Newton se refere obviamente ao dogmatismo e à referência à personalidade de Marx como um critério de autoridade teórica. Vale notar, além disso, que os grandes debates que consolidariam as posições antirracista e anticolonial do movimento comunista não só prolongam as posições mais radicais de Marx, mas as aprofundam e concretizam, especialmente com a consolidação do movimento maoista. Ver, sobre este ponto, BIEL, 2015.

 [10] Em referência à caricatura racista dos negros através do personagem Jim Crown, interpretado com o uso do blackface pelo ator branco Thomas Rice

[11] Ver GIBSON & JUNG, 2002.

[12] Quando Haywood se refere ao “conceito marxista-leninista da questão nacional”, seria preciso lembrarmos das definições apresentadas por Stalin em Sobre a questão nacional. Com efeito, quando Haywood caracteriza o povo preto nos EUA como uma nacionalidade, não se trata de modo algum de uma perspectiva subjetivista ou voluntarista, uma vez que uma “nação é uma comunidade estável e historicamente constituída de pessoas, formada com base em uma linguagem, um território, uma vida econômica e um aspecto psicológico comuns, manifestados em uma cultura comum” (STALIN, online). Os marcos desta comunidade entre o povo preto nos EUA – o Black English, o povoamento da região do Black Belt, as condições econômicas comuns de exploração rurais e urbanas, e as formas de subjetividade associadas a estes fatores, assim como a cultura afro-americana comum em que eles se exprimem – a definiam de maneira muito precisa como uma nacionalidade, nacionalidade que tanto em relação sua dominação jurídica e política pelo Estado imperialista, quanto em relação a sua condição econômica de nação explorada no sistema econômico imperialista, só podia ser vista como uma nação oprimida.

[13] O diagnóstico de que a nação oprimida negra constitui uma colônia interna seria desenvolvido a partir das teses de Haywood sobre a nação oprimida interna, especificamente pelo Revolutionary Action Movement, de Robert Williams. Ver BLOOM & MARTIN, p. 32.

[14] É preciso afirmar que a tese de que Stalin seria uma forma de “sujeito” da burocratização, o seu autor, ou, do mesmo modo, o representante dos estratos burocráticos é completamente vazia de sentido, ainda que muito repetida. A direção de Stalin colocou uma série limites relativos aos interesses deste conjunto de técnicos, como a garantia jurídica da nacionalização dos meios de produção e o combate à burocratização no interior do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Por outro lado, Stalin cometeu também uma série de erros de direção importantes que tiveram, como uma das suas consequências, o desenvolvimento do poder de classe destes mesmos estratos burgueses. Um balanço equilibrado do período de Stalin, distinguindo seus erros e seus acertos, que permanecem sendo o principal de sua direção, já foi elaborado pelo Partido Comunista da China (PCCh). Para este ponto, ver https://lutacontinuablog.blogspot.com/2020/07/sobre-experiencia-historica-da-ditadura.html.

[15] Devemos nos lembrar de que até o último minuto as grandes “democracias” liberais europeias recusaram as tentativas diplomáticas de Stalin de formar uma aliança militar antinazista na esperança de que Hitler, com suas posições anticomunistas e seu expansionismo antieslavo se lançasse sobre a URSS, o pacto germano-soviético tendo sido uma manobra de Stalin para postergar esta fase da guerra Sobre este ponto, ver https://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/europe/russia/3223834/Stalin-planned-to-send-a-million-troops-to-stop-Hitler-if-Britain-and-France-agreed-pact.html.

[16] Para todos estes pontos, ver AMIN, 2017, p. 7-9.

[17] Ver igualmente KELLEY & ESCHE, 2018, p. 15-17 e 41-42.

[19] Ver ABU-JAMAL, 2016, p. 96-97.

[20] As regras incluíam pontos como “Nenhum membro do Partido pode estar de posse de narcóticos ou maconha enquanto faz trabalho do Partido”, “Nenhum membro do Partido pode estar de posse de uma arma enquanto está bêbado ou sob efeito de narcóticos ou maconha”, “as aulas de formação política são obrigatórias para os membros em geral”, “Todos em posição de direção deve ler não menos do que duas horas por dia para se manterem atualizados da situação política em transformação”, “Todas as seções devem aderir à política e à ideologia estabelecida pelo Comitê Central do Partido Pantera Negra”, em quanto os pontos de atenção e as regras de disciplina incluíam orientações como “Falar educadamente”, “Pagar corretamente por tudo que comprar”, “Não danificar propriedade ou plantações das massas pobres e oprimidas”, “Não tomar liberdades com as mulheres” ou “Se em algum momento fizermos prisioneiros, não os maltratem”. Ver FONER (ed.), 1970, p. 6.

[21] Ver ABU-JAMAL, 2016, p. 70.

[22] Que, por sua vez, foi ela mesma resultante de uma transformação nas lutas de classes camponesas nos EUA. A mecanização da produção rural no capitalismo é, em parte, também uma resposta capitalista contra a luta camponesa pela posse da terra, assim como o desenvolvimento da grande maquinaria e das formas de extração do mais-valor relativo foram o resultado de uma luta contra o aumento da jornada de trabalho.

[23] Como aponta justamente Mumia Abu-Jamal, as ideias centrais do BPP continuam sendo equivalentes à heresia. “Ainda que praticadas naquele tempo e lugar, estas ideias não encontraram espaço na economia política americana. Além disso, um ambiente político em transformação fez de muitas dessas ideias, como o socialismo e a alianças reais entre os povos de todas as raças, etnias e gêneros, não tão populares nos dias de hoje. Vivemos em uma era em que o nacionalismo reacionário parece predominar, em que a própria ideia de que americanos brancos (ou outros) possam interagir com as questões pretas parece heresia. O relativamente novo Novo Partido Pantera Negra, composto por pessoas formadas na Nação do Islã, parece refletir essa merda”. (ABU-JAMAL, 2016, p. 85)

[24] Em resposta às cartas de um grupo nacionalista preto que fazia campanha pela fundação de uma República da Nova África nos estados do sul dos EUA, Newton escreve que “No que diz respeito à nossa posição quanto a separação, nós exigimos, como vocês sabem, um plebiscito supervisionado pela ONU para que os pretos possam decidir se eles querem se separar da união ou qualquer outra posição que desejem. No que diz respeito ao Partido Pantera Negra, estamos submetidos à vontade da maioria do povo, mas pensamos que o povo deve ter essa escolha, e pensamos que a República da Nova África está perfeitamente justificada em exigir e declarar o direito de se separar da união. [Mas pensamos] que certas condições têm que existir antes mesmo que nos seja dado o direito de fazer essa escolha. Também levamos em consideração o fato de que se os pretos nesse mesmo minuto puderem se separar da união e ter, digamos, cinco estados ou seis estados, seria impossível ter liberdade lado a lado de um país capitalista e imperialista. Todos sabemos que a mãe África não é livre simplesmente por causa do imperialismo, da dominação ocidental. E não há indicação de que seria diferente se tivéssemos um país separado, aqui na América do Norte. De fato, logicamente sofreríamos com o imperialismo e o colonialismo ainda mais do que o Terceiro Mundo está sofrendo agora. Eles estão geograficamente melhor localizados, milhares de milhas distantes, mas ainda assim eles não podem se libertar simplesmente por conta de (...) desenvolvimentos tecnológicos que o Ocidente tem e que fazem o mundo muito menor, uma pequena vizinhança. Então, levando essas coisas em consideração, concluímos que a única maneira pela qual podemos ser livres é livrando a Terra de uma vez por todas de toda a estrutura opressora da América. Sabemos que não podemos fazer isso sem luta popular, sem muitas alianças e coalizões, e essa é a razão pela qual estamos nos movendo no sentido em que estamos, de maneira que possamos conseguir tantas alianças quanto possamos com pessoas que estão igualmente insatisfeitas com o sistema”. (cit. em FONER (ed.), 1970, p. 71-72).

[25] Para a crítica do nacionalismo cultural, ver também o texto de Linda Harrison, militante do Partido, “Sobre o nacionalismo cultural”, em FONER (ed.), 1970 p. 151-153.

[26] Ver FONER (ed.), 1970 p. 154. Não poderemos aqui desenvolver uma análise das teses de Newton acerca do chamado “Intercomunalismo”. Cabe dizer, no entanto, que, depois de 1970, Newton passa a afirmar um novo momento na ideologia do Partido. Mantendo a orientação comunista, Newton afirma que o internacionalismo teria sido superado pelo “intercomunalismo”. A tese de Newton é de que com a generalização do capitalismo monopolista e da nova fase do imperialismo a partir do fim dos anos 1960, se tornaria inviável a existência de nações, no sentido próprio do marxismo-leninismo, cabendo então falar do conjunto global de comunidades em luta, que deveriam ser conquistadas para que pudesse haver uma passagem mundial ao comunismo. Esta tese se provou errada, ao longo da história: a generalização dos monopólios não substitui em nada a organização das populações em Estados nacionais e tampouco a distribuição da população em nacionalidades. No entanto, em relação a este erro importante de Newton cabe afirmar o mesmo que Lênin afirmava dos erros de Rosa Luxemburgo: é o erro de uma águia, que nem por isso se torna comparável a uma galinha. Este erro tem certos aspectos positivos que devem ainda ser objetos de uma sistematização do movimento comunista, em especial em suas relações com as teses do uso internacional da Guerra Popular Prolongada, uma vez que busca encarar os países socialistas como “territórios liberados” e áreas de base revolucionárias. Ver HILLIARD (ed.), 2002, p. 181-199.

[27] Mumia Abu-Jamal aponta, no entanto, que ainda que esta fosse a orientação do Comitê Central, as deficiências da organização da formação política nas bases do Partido mas, sobretudo, a origem comunitária e prática dos quadros fazia com que por vezes a influência de Malcolm X fosse maior que a do maoismo na prática militante, ainda que este último permanecesse uma referência central para as bases. Ver ABU-JAMAL, 2016, p. 66, 105-18. Esta adesão ao maoismo era a existente no movimento anti-revisionista dos anos 1960-70, aquela que tomava como referência o marxismo-leninismo, pensamento Mao Tsé-Tung. Ainda que já se reconhecesse em diversas partes do mundo que o maoismo trazia inovações centrais e constituía uma verdadeira etapa superior do desenvolvimento do marxismo revolucionário, o início da sistematização do marxismo-leninismo-maoismo só ocorre com o lançamento da Guerra Popular pelo Partido Comunista do Peru nos anos 1980. Para uma síntese posterior desta sistematização pelo Movimento Internacionalista Revolucionário, ver http://paginavermelha.org/documentos/mridocs/vivaomlm.htm.

[28] O caráter antifascista da Frente estava longe de ser uma arbitrariedade, uma vez que o BPP diagnosticava claramente o desenvolvimento da centralização do poder político e a militarização da sociedade norte-americana nos anos 1960, resultados da constituição de uma verdadeiro Estado de exceção imperialista mesmo no interior do território norte-americano.

[29] Ver BLOOM & MARTIN, 2016, p. 300.

[30] Ver NEWTON, 1972, p. 152-156.

[31] Ver ABU-JAMAL, 2016, p. 217-218. O campo de treinamento foi descoberto e desmontado pelo Serviço de Segurança Central depois que um enviado do Partido foi seguido até sua localização. Este enviado foi deslocado para o campo de treinamento para inquirir Geronimo Ji-Jaga sobre suas posições no Partido, resultado direto da campanha de contra inteligência que levou à desintegração do BPP, como veremos adiante.

[33] É curioso, aliás, que Hoover apelasse ao PCUSA, lamentando que “o Partido Comunista não conseguiu controla-los [o BPP]” e que “os militantes pretos são mais ou menos uma lei para si mesmos e que não querem nenhuma liderança além deles mesmos”. Como diz Mumia Abu-Jamal, “Nos perguntamos porque Hoover, um ardente anticomunista, lamentaria a falta de controle do Partido Comunista”. As implicações sobre o papel do revisionismo são claras. Para todos estes pontos, ver ABU-JAMAL, 2016, p. 120.

[34] Ver especialmente ABU-JAMAL, 2016, p. 136-144 e 210-212.

 

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