As organizações do sistema colonial e dos modos de produção pré-capitalistas que este reproduzia em sua periferia sofrem uma grande mudança com o desenvolvimento do imperialismo. Nas etapas anteriores da acumulação de capitais era relativamente indiferente às formações sociais capitalistas se o excedente de que se apropriavam era ou não produzido segundo relações de produção capitalistas. O problema era se apropriar da maior quantidade possível de riquezas para transformá-las em capitais. Tratava-se para as formações sociais colonizadoras, sobretudo, de garantir o abastecimento de bens de consumo com alto valor no mercado mundial ao menor preço possível, de aumentar sua reserva de matérias primas baratas e de garantir pela coerção mercados consumidores a seus produtos manufaturados como métodos através dos quais aumentar seus lucros. Com a entrada do capitalismo em seu estágio imperialista estas exigências coloniais não são superadas e continuam a moldar todas as formações sociais subordinadas ao sistema, mas são, então, subordinadas às novas exigências próprias à acumulação imperialista.
Foi Lênin, em seu O imperialismo, fase superior do capitalismo, quem analisou de maneira mais justa esta nova fase do desenvolvimento capitalista. Nesta fase as forças produtivas atingem seu nível máximo de socialização no interior das estruturas capitalistas, ao mesmo tempo em que os limites impostos pela apropriação privada dos meios de produção devem ser progressivamente reforçados para manter a dominação desta base econômica. O capitalismo entra em sua fase propriamente monopolista, suprimindo a “livre concorrência” de capitais que dominava sua fase intermediária de desenvolvimento, concentrando os capitais em um número cada vez menor de proprietários. A diversidade das empresas capitalistas é superada, mantendo-se apenas na aparência, dando lugar a empresas capitalistas monopolistas nacionais e, posteriormente, mundiais. As empresas monopolistas são progressivamente controladas pelo capital financeiro, fusão do capital bancário e do capital industrial[1], ele mesmo indissociável do desenvolvimento monopolista, resultado da concentração de capitais ao mesmo tempo em que seu agente.
A princípio, o imperialismo se define fundamentalmente como a fase monopolista do capitalismo. Mas esta definição fundamental, nos diz Lênin, deve ser ampliada para conter ainda outros elementos essenciais do imperialismo. Em primeiro lugar, na fase imperialista a circulação e a exportação de mercadorias ocupa um lugar secundário em relação à exportação de capitais. Lênin nos diz que “o desenvolvimento desigual, por saltos, das diferentes empresas e ramos da indústria e dos diferentes países é inevitável sob o capitalismo”[2]. Se, nas fases anteriores do desenvolvimento capitalista, o objetivo das formações sociais capitalistas centrais era produzir bens manufaturados a serem vendidos nos mercados coloniais, comprando destes matérias-primas a baixos custos, com o desenvolvimento do imperialismo, a os países capitalistas passam a exportar seus capitais para as colônias. Nesta fase, a acumulação de capitais nas formações sociais capitalistas atinge um nível extremamente elevado, tornando possível esta exportação de capitais na medida em que os capitalistas buscam auferir maiores lucros nas formações sociais coloniais.
“Nestes países atrasados o lucro é em geral elevado, pois os capitais são escassos, o preço da terra e os salários relativamente baixos, e as matérias-primas baratas. A possibilidade da exportação de capitais é determinada pelo fato de uma série de países atrasados terem sido já incorporados na circulação do capitalismo mundial, terem sido construídas as principais vias férreas ou iniciada sua construção, terem sido asseguradas as condições elementares para o desenvolvimento da indústria, etc. A necessidade da exportação de capitais obedece ao fato de que em alguns países o capitalismo ‘amadureceu excessivamente’ e o capital (dado o insuficiente desenvolvimento de sua agricultura e a miséria das massas) carece de campo para a sua colocação ‘lucrativa’”[3].
Os países exportadores de capitais se mobilizam a partir daí para uma partilha direta do mundo, na exata medida em que buscam garantir seus lucros e, portanto, o controle direto sobre as matérias-primas, a força de trabalho e as condições de reprodução das formações sociais para as quais exportaram seus capitais. O imperialismo chega a dominar diretamente, assim, os principais meios de produção destas formações sociais coloniais.
Ora, é crucial compreender que, justamente na medida em que exporta capitais, o imperialismo é levado a desenvolver relações de produção capitalistas nos países que domina. O lucro capitalista pressupõe o mais-valor, o mais-valor pressupõe o valor, e o valor pressupõe as relações de produção capitalistas. O desenvolvimento destas relações, com a apropriação privada dos meios de produção e a separação entre o produtor direto e os meios de produção, é a condição essencial para o desenvolvimento do capitalismo imperialista. Será necessário, portanto, que os capitais exportados tomem a forma de meios de produção privados e que seja formado um exército de força de trabalho “livre”, sendo os produtores separados de qualquer acesso direto aos meios de produção pelos quais possam reproduzir sua existência material.
Vimos que o sistema colonial das fases inicias do desenvolvimento capitalista subordinava as colônias ao capital comercial, e a um capital comercial já ligado diretamente à acumulação capitalista. A exploração nas formações sociais coloniais se tornava, com isto, ainda mais intensa na medida em que deveriam produzir, com os menores custos de produção possíveis, mercadorias para o mercado mundial, o lucro desta operação sendo convertido em capital para a acumulação das metrópoles. O novo sistema colonial imperialista integra à exploração colonial a necessidade do desenvolvimento de relações de produção capitalistas como a condição pela qual os capitais exportados pelos países imperialistas podem se estabelecer na produção social e produzir valor através da exploração de uma força de trabalho “livre”.
Esta nova situação colonial pode a impulsionar, aliás, o desenvolvimento de uma situação semicolonial. O que define uma semicolônia é, inicialmente, o critério jurídico-político de sua independência formal combinado com uma situação econômica colonial na qual o produto social excedente é absorvido e acumulado em sua maior parte por formações sociais exteriores. Como explica Lênin, os
“Estados ‘semicoloniais’ dão-nos um exemplo das formas de transição que encontramos em todas as esferas da natureza e da sociedade. O capital financeiro é uma força tão considerável, pode dizer-se tão decisiva, em rodas as relações econômicas e internacionais que é capaz de subordinar, e subordina completamente, mesmo os Estados que gozam da independência política a mais completa (...). Mas, compreende-se, a subordinação mais lucrativa e mais ‘cômoda’ para o capital financeiro é uma subordinação tal que traz consigo a perda da independência política dos países e dos povos submetidos. Os países semicoloniais são típicos, neste sentido, como ‘caso intermédio’. Compreende-se, pois, que a luta por esses países semidependentes se tenha forçosamente exacerbado, principalmente na época do capital financeiro, quando o resto do mundo se encontrava já repartido”[4].
A tendência-limite do imperialismo é a generalização da situação colonial e, para tanto, uma subordinação jurídica e política direta das formações sociais coloniais às formações sociais imperialistas. O sistema colonial imperialista se estendeu, com efeito, até meados dos anos 1970 no continente africano, e só foi derrubado pela luta revolucionária dos povos que, por sua vez, teve como um de seus pressupostos o desenvolvimento mundial de um campo socialista que limitasse as forças do imperialismo. Por outro lado, a necessidade da organização das condições de reprodução do capitalismo nos países coloniais gera a tendência à organização de aparelhos de Estado ligados ao planejamento e à organização desta reprodução. Isto exige que uma determinada parcela dos lucros produzidos pelo capital imperialista permaneça no interior das formações sociais coloniais para organizar sua reprodução local. Esta tendência, em muitos casos, criou as condições objetivas para que os países coloniais se tornassem semicoloniais, mantendo um aparelho de Estado formalmente independente, ao mesmo tempo em que os traços gerais de sua realidade colonial fossem mantidos.
O tipo de capitalismo que se desenvolve nas formações sociais coloniais e semicoloniais é distinto daquele que se desenvolve nas formações sociais imperialistas. Nos países coloniais o desenvolvimento capitalista está essencialmente relacionado aos capitais e aos mercados externos, é um desenvolvimento voltado para o exterior, extrovertido, enquanto nos países imperialistas este desenvolvimento é autocentrado ou introvertido. O capital imperialista só é investido nos países coloniais em busca de uma remuneração mais alta do que aquela que poderia obter no interior de sua formação social de origem. Seu objetivo principal é obter nos países coloniais produtos que possam integrar o capital constante ou o capital variável com custos de produção menores do que aqueles que teriam nos países centrais. Ele desenvolve, assim, um setor capitalista exportador nos países coloniais em que a renumeração da força de trabalho é muito inferior à dos países imperialistas. Esta remuneração inferior da força de trabalho na colônia será garantida pelo imperialismo por todos os meios econômicos e extraeconômicos possíveis. A relação que é objetivamente estabelecida no desenvolvimento capitalista autocentrado entre a remuneração da força de trabalho e o desenvolvimento das forças produtivas desaparece nos países coloniais. Nestes, a remuneração é mantida sempre nos níveis mais baixos possíveis segundo as condições sociais e políticas[5]. É esta depressão colonial da remuneração da força de trabalho que é a base para o que Lênin chama de “superlucro” do capital imperialista[6]. Veremos que ela terá uma função essencial na reprodução de elementos constituintes das formações sociais coloniais e semicoloniais.
O capital imperialista impede a consolidação de qualquer forma de capitalismo local autocentrado nas formações coloniais que possa oferecer concorrência, fazendo com que o capitalismo nestas formações permaneça extrovertido e voltado fundamentalmente para o abastecimento do mercado externo. É este mesmo bloqueio do desenvolvimento de formas capitalistas nas colônias que impede, aliás, um amadurecimento conclusivo do capitalismo na periferia. Por isso mesmo o desenvolvimento capitalista nestas formações sociais é essencialmente diferente daquele que ocorre nos países imperialistas. É esta a forma de desenvolvimento do capital imperialista nos países coloniais que já foi chamada de “subdesenvolvimento”, entendido não como o “atraso” no desenvolvimento capitalista, mas justamente como um desenvolvimento capitalista indissociável do bloqueio da ampliação do mercado interno, da formação de uma economia extrovertida e baseada na redução dos níveis salariais abaixo do custo de reprodução da força de trabalho[7].
Além disso, enquanto o desenvolvimento capitalista autocentrado nos países imperialistas tende a tornar o modo de produção capitalista exclusivo, o desenvolvimento capitalista colonial não segue esta tendência ao limite, levando a uma grande heterogeneidade das formações sociais periféricas. No caso das formações sociais imperialistas, o desenvolvimento autocentrado tende a superar esta heterogeneidade em um ritmo superior, fazendo do capitalismo rapidamente o único modo de produção de importância e definindo a luta de classes nos limites da contradição entre proletariado e burguesia. Por outro lado, nos países coloniais e semicoloniais “o modo de produção capitalista introduzido do exterior, ou seja, fundado sobre o mercado externo, não tende a se tornar exclusivo, mas apenas dominante”[8], a luta de classes tendendo a implicar maior heterogeneidade de contradições – e isso ainda que, em determinada fase de seu desenvolvimento o modo de produção capitalista se torne não apenas o dominante, mas o principal ou aquele no qual a maior parte dos processos de trabalho de uma formação social são realizados. Esta heterogeneidade, no entanto não é apenas uma coexistência ou uma justaposição. Como vimos, os modos de produção pré-capitalistas são articulados à acumulação de capitais externa já no sistema colonial, e agora são submetidos ao desenvolvimento do capital imperialista, gerando novas formas híbridas. Esta subordinação das formações sociais coloniais e semicoloniais ao capital imperialista é, com isso, também uma subordinação de classe, é sua subordinação à burguesia imperialista, burguesia que nas colônias impulsiona o desenvolvimento de relações de produção capitalistas e de relações de produção não-capitalistas em uma unidade de contrários.
O desenvolvimento capitalista organizado pelo imperialismo nos países coloniais gera as condições para o surgimento de uma burguesia própria destas formações sociais, uma burguesia “cuja existência e desenvolvimento dependem do imperialismo” e que “serve diretamente os capitalistas dos países imperialistas que a alimentam”[9]. Esta burguesia compradora se forma com a predominância do capitalismo comercial que acompanha o modelo extrovertido. Nas fases iniciais do desenvolvimento do imperialismo a burguesia compradora se apresenta como intermediária comercial entre a burguesia da metrópole e a colônia, dominando o mercado interno pela venda dos produtos do capital imperialista, operando sua circulação. No entanto, com o desenvolvimento imperialista, a burguesia compradora se desloca cada vez mais para uma associação subordinada com os monopólios, se integrando a suas cadeias produtivas[10] e financeiras. Em sua formação histórica ela é geralmente composta, em especial nas formações latinoamericanas e asiáticas, por uma burguesia urbana em formação vinda dos meios dos proprietários fundiários e está ligada a estes estruturalmente por sua função na agricultura de exportação. É por isso que Mao Tsétung caracteriza a ambos, burguesia compradora e proprietários fundiários, como “vassalos perfeitos da burguesia internacional”.
É importante notar que a burguesia compradora não pode ser confundida com a burguesia nacional. Este erro, consequência de uma definição jurídica e não econômica das classes, tem consequências estratégicas graves. Nas formações sociais coloniais a burguesia nacional é, como aponta Mao, a “média burguesia”. Esta é formada a partir dos comerciantes e proprietários voltados para o abastecimento do mercado local, e, como burguesia, exprime a existência de relações de produção capitalistas, dependendo da exploração do trabalho assalariado. Ela tem sua principal fonte de lucro paga em moeda nacional, e se vê impedida pela força dos grandes monopólios comerciais de ultrapassar o nível da venda a varejo ou, obviamente, de chegar a exportar seus produtos[11]. Esta classe, necessariamente vacilante, uma vez que se vê entre o imperialismo, de um lado, e a luta proletária, de outro, tende a se tornar cada vez menor com a generalização dos monopólios imperialistas, podendo ocupar, no entanto, uma posição importante nas formações coloniais e semicoloniais.
Além disso, o desenvolvimento imperialista estabelece as condições para o surgimento de uma nova fração da burguesia a partir da burguesia compradora, fração que terá um papel essencial no capitalismo dos países coloniais. Esta fração, no entanto, não pode ser compreendida sem que se compreenda antes a forma específica da tendência ao desenvolvimento de burocracias estatais nas formações sociais coloniais e semicoloniais.
O desenvolvimento de uma burocracia estatal (administração, técnicos especializados, altos oficiais militares, gerentes políticos profissionais, etc.) para o exercício do poder político e a gestão de certos setores da economia é uma tendência geral que acompanha a constituição do aparelho de Estado capitalista e que se aprofunda com o imperialismo. Nas formações sociais imperialistas, quanto mais a acumulação progride, maior e mais complexo se torna este aparelho e mais a burocratização se aprofunda. No entanto, o fenômeno da burocratização nos países coloniais uma natureza particular. Vimos como o imperialismo tende a generalizar a situação colonial, mas cria também as condições para o desenvolvimento de um novo aparelho de Estado nas colônias. A economia das colônias imperialistas, por outro lado, está diretamente subordinada à burguesia imperialista. A fraqueza relativa das classes dominantes internas e a inconsistência de seu desenvolvimento próprio fazem com que a burocracia estatal tenha, aqui, uma influência consideravelmente maior do que nos países imperialistas. O peso relativo que a burocracia estatal tem nestas formações não se deve à sua quantidade ou à difusão destes aparelhos de Estado, certamente maiores nas formações imperialistas, mas a sua função e seu papel no interior do sistema.
Esta burocracia assume uma função central na organização do capitalismo monopolista nas formações sociais coloniais. Há uma importante tendência geral para a formação de uma nova fração burguesa a partir de uma relação próxima entre a burocracia estatal e segmentos da burguesia compradora na medida em que, nas colônias, são organizados monopólios capitalistas a partir da ação estatal. É este o processo de constituição do que Mao Tsétung em diversos textos caracteriza como capitalismo burocrático[12]. Estes monopólios podem se desenvolver seja no sentido típico do capitalismo privado, seja no sentido do capitalismo de Estado. O importante para esta caracterização é, sobretudo, a formação de capitais monopolistas pelo acesso a investimentos estatais ou pela organização direta da burocracia e sua fusão com a burguesia, não importando se os detentores destes capitais aparecem na forma jurídica da uma burguesia privada ou de uma burguesia de Estado.
A organização burocrática dos monopólios leva ao surgimento de uma nova contradição entre estas duas frações burguesas: enquanto a burguesia compradora está diretamente associada ao desenvolvimento imperialista, em certas condições a burguesia burocrática tende a ampliar seus interesses no desenvolvimento de uma indústria nacional a partir dos aparelhos de Estado. Esta contradição, no entanto, permanece uma contradição secundária e não antagônica.
Em seu desenvolvimento, como no caso latinoamericano do período de 1930-1960, a burguesia burocrática pode chegar a competir com a produção imperialista. No entanto, para o aumento de sua capitalização ela depende diretamente da transferência do excedente gerado pela exportação, transferência operada diretamente pelos meios burocráticos, uma vez que se depara com um mercado interno frágil e desagregado. A burguesia burocrática se vê dependente, assim, dos mesmos modelos imperialistas e do setor agroexportador com os quais entra em contradição aparente, não podendo intensificar esta contradição a partir de determinado limite. Mas, sobretudo, a burguesia burocrática depende necessariamente do baixo nível dos salários que lhe permite manter seus lucros e concorrer em certa medida com os preços imperialistas. Ela não pode, assim, permitir qualquer avanço da luta proletária que comprometa sua acumulação, assim como não pode permitir qualquer avanço que ameace sua dominação de classe. A tendência é, assim, que esta fração da burguesia tenda a se associar progressivamente às cadeias produtivas do imperialismo, suas contradições com este se mantendo em uma intensidade inferior[13].
A percepção do problema do capitalismo burocrático nos países coloniais e semicoloniais é mais uma das principais contribuições do marxismo-leninismo-maoismo em economia política, identificado já como “o capitalismo que é desenvolvido nas nações oprimidas pelo imperialismo e com diversos graus subjacentes de feudalidade ou outros [modos de produção] anteriores inclusive”, e por isso “este é um problema vital principalmente para Ásia, África e América Latina, pois de sua compreensão deriva uma boa condução revolucionária”[14].
Ora, todos estes elementos do desenvolvimento do capital imperialista nas colônias se desenvolverão em articulação com uma base econômica pré-capitalista e darão lugar formas de transição especialmente complexas entre os modos de produção. Vimos anteriormente como Marx caracterizava as tendências gerais de transição do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista no caso das formações sociais de desenvolvimento capitalista autocentrado. Esta caracterização é retomada por Lênin em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Neste texto, Lênin apresenta duas vias de transição ao modo de produção capitalista, duas vias de passagem de relações de produção pré-capitalistas a relações de produção capitalistas, no que diz respeito à produção agrária.
“Ou bem a velha fazenda latifundiária, ligada por milhares de laços ao direito de servidão, se conserva, transformando-se lentamente em uma fazenda puramente capitalista, de tipo ‘junker’. Neste caso, a base da transição definitiva do sistema de pagamento em trabalho ao capitalismo é a transformação interna da fazenda latifundiária baseada na servidão; e todo o regime agrário do Estado, ao se transformar em capitalista, conserva ainda por muito tempo os traços da servidão. Ou bem a revolução rompe a velha fazenda latifundiária, destruindo todos os laços de servidão e, imediatamente, a grande propriedade. A base da transição definitiva do sistema de pagamento em trabalho é o livre desenvolvimento da produção camponesa, que recebe um enorme impulso graças à expropriação das terras dos latifundiários a favor dos camponeses; e todo o regime agrário se transforma em capitalista, posto que a diferenciação do campesinato se realiza com tanto mais rapidez quanto mais radicalmente são eliminados os vestígios da servidão. Dito com outras palavras: ou bem a conservação da massa principal da propriedade latifundiária e dos principais pilares da velha ‘superestrutura’, de onde o papel preponderante do burguês liberal-monárquico e do latifundiário; a rápida passagem dos camponeses remediados para o seu lado, a degradação da massa de camponeses que não apenas é expropriada em enorme escala, mas que, além disso, é escravizada pelos diferentes sistemas de indenização propostos pelos democratas constitucionalistas e oprimida e embrutecida pelo domínio da reação (...). Ou bem a destruição da propriedade dos latifundiários e de todos os principais pilares da velha ‘superestrutura’ correspondente; o papel predominante do proletariado e da massa de camponeses com a neutralização da burguesia vacilante ou contrarrevolucionária; o desenvolvimento mais rápido das forças produtivas sobre a base capitalistas com a melhor situação possível, na medida que é conhecida geralmente nas condições da produção de mercadorias e das massas operárias e camponesas. (...) Naturalmente, são possíveis as mais variadas combinações entre os elementos de tal ou qual tipo de evolução capitalista, e apenas os pedantes incorrigíveis poderiam pretendem resolver as questões particulares e complicadas, que surgem em tais casos, apenas por meio de citações de uma ou outra opinião de Marx referente a uma época histórica distinta”[15].
Estas duas vias de transição ao capitalismo no campo serão, posteriormente, chamadas de “via prussiana” e “via americana”, respectivamente. Na primeira, forma geralmente encontrada nas formações sociais que transitaram tardiamente ao capitalismo em função da reprodução da dominação de um modo de produção anterior, o monopólio pré-capitalista da terra “ligado por milhares de laços” à servidão se transforma lentamente em monopólio capitalista. O pagamento em trabalho, forma de realização da obrigação econômica servil do produtor direto com o senhor de terras, se desenvolve para formas especificamente capitalistas, mas mantendo “por muito tempo” os “traços da servidão”. Estes “traços da servidão” não excluem, aliás, a expropriação dos camponeses e sua inserção em um sistema de dívidas agrárias.
Na segunda, típica das formações que transitaram ao capitalismo precocemente, a base da grande propriedade fundiária feudal é decomposta e a terra é distribuída entre a população camponesa na forma da pequena propriedade fundiária. Veremos, adiante, a questão da natureza da “pequena produção”. Mas no caso desta via de transição a pequena propriedade tem uma natureza fundamentalmente diferente daquela que tem a posse direta de tipo servil. Uma vez suprimido o monopólio pré-capitalista da terra e as formas da obrigação econômica servil, a apropriação da terra pelos produtores diretos assume a forma da pequena propriedade rural. Esta via garante a rápida constituição de um mercado interno e o aumento da produtividade do trabalho, garantindo condições superiores para o desenvolvimento capitalista. Mas esta forma da pequena propriedade, como aponta Lênin, é, ela também, uma forma transitória, uma vez que o desenvolvimento rural capitalista leva, necessariamente, à concentração de terras e à proletarização de uma parcela cada vez maior da população camponesa. A pequena propriedade camponesa rapidamente é subordinada à acumulação de capitais, seja pela imposição da burguesia que pode controlar a produção camponesa pelo dinheiro, seja pelo impulsionamento da “modernização” rural a base de insumos e investimentos controlados pela produção capitalista, seja pelo controle capitalista dos meios de circulação. Esta situação de dependência do capital acelera a diferenciação de classes rurais e a proletarização do campesinato, constituindo rapidamente um grupo de camponeses ricos por “kulakização”, ao mesmo tempo em que os camponeses médios são, na prática, reduzidos à situação de proletários a domicílio[16].
A primeira via não implica, portanto, uma ruptura direta com o modo de produção feudal e implica a reprodução “por muito tempo” de traços da servidão. É a esta situação que Marx chama, em O capital, identifica como um tipo da subsunção formal: os processos de trabalho servis são subordinados ao processo de acumulação capitalista e, apenas na medida em que impulsionam este processo de acumulação, são reproduzidos por ele. Esta reprodução, no entanto, tem como limite sua superação e sua abolição pelo próprio processo de acumulação capitalista, limite atingido no momento em que as relações de produção capitalistas se tornam as principais nas formações sociais que já dominam, garantindo a disponibilidade em larga escala de força de trabalho “livre”[17]. É a esta situação que o movimento comunista internacional chamou de semifeudalidade.
Analisando o problema agrário e a transição ao capitalismo na Rússia, Lênin aponta que a questão central neste período é a da passagem da servidão ao capitalismo. Lênin afirma que a essência do modo de produção baseado na servidão é que
“Toda a terra da unidade de dada fazenda agrícola, ou seja, de dado bem patrimonial, se dividia em senhorial e camponesa; esta última era entregue em parcelas aos camponeses, que (recebendo, além disso, outros meios de produção, como bosques ou às vezes gado, etc.) a cultivavam com seu trabalho e seus próprios instrumentos e se sustentavam com ela. O fruto deste trabalho dos camponeses era o produto necessário, segundo a terminologia da economia política teórica; era necessário para o camponês, posto que lhe proporcionava os meios de subsistência, e para o latifundiário, já que lhe dava mão de obra; exatamente da mesma maneira que o produto que compensa a parte variável do valor do capital é o produto necessário na sociedade capitalista. O mais-trabalho dos camponeses constituía o cultivo da terra do latifundiário por estes e com os mesmos instrumentos; o produtor deste trabalho era destinado ao latifundiário. O mais-trabalho se diferenciava, aqui, por conseguinte, do trabalho necessário no espaço: cultivavam a terra senhorial para o latifundiário e suas parcelas para si; para o latifundiário trabalhavam alguns dias da semana, e para si, os restantes. A “parcela” do camponês servia, então, nesta economia como um salário em espécie (para nos expressarmos de acordo com conceitos modernos) ou como um meio para garantir a mão de obra para os latifundiários. A fazenda “própria” dos camponeses em sua parcela era a condição da fazenda do latifundiário; não tinha o objetivo de “garantir” aos camponeses os meios de existência, mas de assegurar mão de obra ao latifundiário”[18].
Lênin afirma que esta forma de produção é essencialmente oposta à produção capitalista, a primeira sendo baseada na concessão da terra ao produtor e a segunda na separação entre a terra e o produtor[19]. Além disso, ela implica diretamente em sua forma de exploração econômica a dependência pessoal do produtor ao senhor de terras, na forma da “coerção extraeconômica” apontada por Marx. A transição acelerada deste modo de produção ao capitalismo só é possível com a destruição da apropriação feudal da terra e a consequente dissolução da apropriação direta das parcelas de terras pelos produtores.
Ali onde esta destruição não acontecer diretamente, a transição ao capitalismo acontecerá lentamente e coexistindo em diversos níveis com a servidão. Nestes casos formas servis do pagamento em trabalho e as formas capitalistas deverão se articular de inúmeras maneiras. Em uma fase inicial a servidão manterá a sua essência, ainda que possa se apresentar em novas formas, já alteradas pela coexistência com o capitalismo, “seja com o pagamento em dinheiro, como no contrato por empreitada; seja com o pagamento em espécie, como na parceria, em terras ou em servidões, seja com o pagamento em trabalho no sentido estrito da palavra”[20]. Por oposição a estas formas de organização dos processos de trabalho, o capitalismo está baseado na contratação de trabalhadores que produzem com os instrumentos do proprietário e não com seus próprios instrumentos. Ora, estas formas de produção, nos diz Lênin, “se entrelaçam na realidade de uma maneira mais diversa e mais caprichosa: em numerosas fazendas de latifundiários ambas se unem, sendo empregadas distintas operações agrícolas” levando, “na prática, a um grande número dos mais profundos e complexos conflitos e contradições”.
É importante enfatizar que Lênin também não deixa de notar que a análise desta grande complexidade é particularmente difícil: “não existem dados estatísticos precisos sobre a questão e não é provável que eles possam ser coletados: isso exigiria não apenas contabilizar todas as fazendas, mas também todas as operações econômicas nestas fazendas”[21]. Encontraremos, entre outras, dificuldades do mesmo tipo no caso da análise da formação social brasileira. Estas dificuldades, no entanto, não impedem que a questão seja colocada objetivamente. Para isto é preciso mobilizar não apenas a estatística levantada, mas interpretá-la criticamente e, sobretudo, enfatizar os relatos qualitativos colhidos globalmente sobre os processos de trabalho nas unidades de produção. As dificuldades são, em parte, consequência da própria fusão de relações de produção distintas em um mesmo processo de trabalho. Com efeito, nestas situações
“O sistema do pagamento em trabalho se transforma às vezes em capitalista e se funde tanto com ele que se torna quase impossível separá-los e distingui-los. Um camponês, por exemplo, toma em arrendamento um pouco de terra comprometendo-se, em troca, a trabalhar um determinado número de dias (fenômeno, como é sabido, extremamente comum). Como diferenciar este “camponês” do “peão” da Europa Ocidental ou Oriental que recebe um pedaço de terra com o compromisso de trabalhar um determinado número de dias? A vida faz nascer formas tais que com notável gradação unem sistemas de economia opostos por seus traços fundamentais. Se torna impossível distinguir onde termina o ‘pagamento em trabalho’ e onde começa o ‘capitalismo’”[22].
Lênin atribui também uma importância especial ao fato de que o trabalho “semilivre” – e, portanto, “semiservil” – não está baseado apenas em formas diferentes de pagamento, mas envolve sempre de formas de dependência pessoal entre o contratado e o contratante, supondo em todas as suas formas a “coerção extraeconômica” indicada por Marx, ainda que esta coerção assuma a forma jurídica e política da obrigação por dívida do produtor direto para com o proprietário[23].
Ora, Lênin aponta que no caso da Rússia – semelhante ao caso de outros países que transitaram tardiamente ao capitalismo, como a Alemanha, a Itália ou o Japão – o desenvolvimento da “via prussiana” tende a fazer desaparecer progressivamente estes elementos de servidão, ainda que eles possam sobreviver por muito tempo. Este processo de transição segue a tendência típica segundo a qual o modo de produção dominante em uma formação social absorve o excedente gerado por outros modos de produção no interior desta mesma formação, desarticulando progressivamente o modo de produção anterior. A especificidade da situação de subsunção formal consiste em que, durante este período de transição, o modo de produção capitalista reproduz parcialmente os processos de trabalho do modo de produção anterior, mas exclusivamente na medida em que não dispõe imediatamente de uma força de trabalho “livre”. Nestes casos de transição, a reprodução das relações de produção anteriores tende necessariamente a se operar cada vez menos, dando lugar às formas desenvolvidas do modo de produção capitalista. Nas formações sociais de capitalismo autocentrado, o avanço do desenvolvimento capitalista faz com que esta tendência chegue ao limite, e no caso destas formações sociais é possível afirmar que este desenvolvimento tende a se tornar homogêneo, suprimindo as relações de produção pré-capitalistas.
Assim, não é sem razão que se costuma fazer uma analogia entre a “via prussiana” e o desenvolvimento capitalista nas formações sociais coloniais e semicoloniais. Esta analogia, como veremos, está correta. No entanto, é preciso compreender que, nestes casos, o processo de desenvolvimento capitalista apresenta um elemento suplementar, que torna o processo fundamentalmente distinto daquele que ocorreu nas formações sociais centrais que transitaram tardiamente ao capitalismo. Este elemento suplementar não é outra coisa que não o fato de que nos países coloniais o desenvolvimento capitalista é inseparável do imperialismo.
Vimos que, na fase inicial da modernidade e no interior das formações sociais coloniais, os modos de produção pré-capitalistas estão subordinados ao capital comercial. Afirmamos, além disso, que esta subordinação alterava de maneira importante vários de seus aspectos. Vimos também que, para o caso da América Latina, quando se inicia a fase imperialista do capitalismo estes modos de produção eram principalmente feudais, seja por sua predominância desde o início do processo de colonização, no caso da América espanhola, seja pela transição imposta pelas tendências estruturais de desenvolvimento do modo de produção escravista, no caso da América portuguesa e do Caribe. Com o desenvolvimento imperialista, estes modos de produção pré-capitalistas passam não apenas a coexistir com formas capitalistas, mas a interagir de maneira direta e continua com estas formas. Isto faz com que as formações sociais coloniais e semicoloniais apresentem formas próprias de semifeudalidade que são relativamente distintas daquelas das formações de capitalismo autocentrado. Nestas formas os modos de produção pré-capitalistas subordinados ao capital comercial são dominados e reproduzidos pelo capitalismo imperialista. O desenvolvimento imperialista, como vimos, impede qualquer forma de desenvolvimento capitalista autônomo, vinculando a produção social nos países coloniais ao mercado externo. Nestas situações, as formas feudais não tenderão a ser totalmente suprimidas pelo desenvolvimento capitalista, sendo preservadas na medida em que podem servir ao processo de acumulação dos países imperialistas[24].
Quanto a isto, é crucial retomar as análises de Mao Tsétung sobre o caráter semicolonial e semifeudal da formação social chinesa na década de 1940.
“O desenvolvimento da economia de mercado na sociedade chinesa feudal já comportava em si próprio o germe do capitalismo; se não se registrasse uma influência do capitalismo estrangeiro, a China iria igualmente desenvolver-se, passo a passo, numa sociedade capitalista. Mas a penetração do capitalismo estrangeiro acelerou esse desenvolvimento. O capitalismo estrangeiro desempenhou um papel importante na desagregação da economia da sociedade chinesa. Por um lado, minou as bases da economia natural autossuficiente, destruiu o artesanato urbano e o artesanato doméstico rural e, por outro lado, acelerou o desenvolvimento da economia de mercado nas cidades e no campo. Além do efeito desagregador das bases da economia feudal chinesa, essa situação criou certas condições objetivas e possibilidades para o desenvolvimento da produção capitalista na China. Com efeito, a destruição da economia natural abriu uma saída para as mercadorias do capitalismo, enquanto a falência de grande número de camponeses e artesãos proporcionou-lhe um mercado de força de trabalho. (...) Seguramente o propósito das potências imperialistas que invadiram a China não era transformar a China feudal em capitalista; o seu objetivo era, pelo contrário, transformar a China em semicolônia e colônia. (...) Está portanto claro que, com a agressão à China as potências imperialistas aceleraram por um lado a desagregação da sociedade feudal e o desenvolvimento dos elementos capitalistas, transformando desse modo a sociedade feudal em semifeudal e, por outro lado, impuseram a sua feroz dominação sobre a China, reduzindo o país independente à situação de semicolônia e colônia. Combinando esses dois aspectos, vê-se que a sociedade chinesa, colonial, semicolonial e semifeudal, possui as características seguintes: 1) As bases da economia natural autossuficiente dos tempos feudais foram destruídas, mas a base do sistema de exploração feudal – exploração dos camponeses pela classe dos senhores de terras – não só permanece intacta, como também ligada como está à exploração do capital comprador e usurário, é manifestamente predominante na vida socioeconômica chinesa. 2) O capitalismo nacional desenvolveu-se até certo ponto e tem desempenhado um papel considerável na vida política e cultural chinesa, mas não se transformou na forma principal da economia chinesa; é muito débil e em geral está melhor ou pior associado ao imperialismo estrangeiro e ao feudalismo no interior do país”[25]
Esta tendência é generalizada e vemos seu desenvolvimento em grande parte das formações sociais coloniais e semicoloniais. Como Mao afirma claramente, o desenvolvimento imperialista decompõe o modo de produção feudal, ou os outros modos de produção pré-capitalistas, nestas formações sociais. No entanto, ele deixa subsistir “a base do sistema de exploração feudal” ao mesmo tempo em que a articula diretamente a seu processo de acumulação. Nas colônias, a “via prussiana” se estende no tempo, o capitalismo reproduzindo indefinidamente, sob sua dominação, traços pré-capitalistas, em um paradoxal arcaísmo moderno. Para o desenvolvimento agrário nos países coloniais, poderíamos repetir, em um sentido relativamente diferente, as afirmações de Ariovaldo de Oliveira: nestes países “é o próprio capitalismo dominante que gera relações de produção capitalistas e não-capitalistas, cominadas ou não, em decorrência do processo contraditório intrínseco a esse desenvolvimento”[26].
Esta reprodução não-capitalista do capital é fundamental para o problema da semifeudalidade. Esta reprodução não-capitalista do capital em grande escala foi fundamental no sistema colonial, tornando possível a acumulação primitiva de capitais na medida em que um capital comercial que já começava a estruturar o modo de produção capitalista desenvolveu e subordinou a si uma série de modos de produção pré-capitalistas, se apropriando do excedente que estes produziam como capital. Esta situação global contraditória se altera e se aprofunda com o avanço do imperialismo desde o fim do século XIX, gerando efeitos diversos nas formações sociais imperialistas e coloniais.
As formações sociais imperialistas mantiveram em uma nova forma as trocas desiguais do sistema colonial, exportando seus produtos manufaturados e importando matérias-primas e produtos agrícolas das colônias. Esta importação levou à queda dos preços destes últimos produtos nos mercados internos dos países imperialistas, pressionando sua agricultura interna a assumir um caráter intensivo, o que derruba ainda mais os preços, o que, por sua vez, levou indiretamente à decomposição da renda fundiária. A agricultura nas formações imperialistas, assim, passou por um aumento da produtividade do trabalho e uma queda dos preços ao longo de todo o século XX, gerando as condições objetivas para uma acumulação de capitais que se tornará a base de um novo ciclo do desenvolvimento capitalista interno.
A situação nas formações sociais coloniais e semicoloniais era inversa a esta. A renda fundiária mantém geralmente seus níveis de remuneração ao longo de toda a primeira metade do século XX e a produtividade do trabalho permanece baixa. O desenvolvimento do capital imperialista impõe que as vias de desenvolvimento nos países coloniais assumam geralmente formas análogas às da “via prussiana”, em que o desenvolvimento capitalista não decompõe diretamente as relações servis pré-existentes. A baixa rentabilidade das atividades agrícolas, especialmente aquelas ligadas ao mercado interno, leva o capital imperialista à tendência de ser fixar na circulação, subordinando a esta a produção rural sem organizá-la diretamente. Esta produção rural poderá mesmo chegar a desenvolver processos de industrialização sem que estes alterem os elementos fundamentais do processo de trabalho, que passa, como vimos, a articular formas capitalistas e formas servis. As formas feudais de produção agrária são subordinadas à acumulação capitalista e convertidas em capitais, o capital passando a se reproduzir também por meios não-capitalistas.
Além disso, a reprodução destas formas pré-capitalistas terá um papel fundamental na reprodução da força de trabalho nas formações sociais coloniais e semicoloniais. Vimos que a base do superlucro imperialista nos países coloniais era o rebaixamento da remuneração da força de trabalho abaixo dos custos de sua reprodução. As formas pré-capitalistas de produção agrícola constituem, nesta situação, a condição imediata para a redução destes custos de reprodução nos países coloniais. A existência de uma esfera de produção de subsistência, pressupondo o acesso dos produtores imediatos à terra, torna possível a própria existência de um mercado de força de trabalho disponível para a apropriação burguesa.
“É em função dessa[s] estratégia[s] do capital monopolista com relação à agricultura que grandes monopólios industriais em geral nunca produziram sob relações especificamente capitalistas no campo. Optaram por submeter os camponeses e os elos mais frágeis dos capitalistas do campo. Dessa forma, de certo modo abriram espaço para a expansão da produção camponesa, surgindo um camponês ultraespecializado, diferente, portanto, do camponês livre da etapa concorrencial do capitalismo. Um camponês agora permanentemente endividado no banco, pressionado pelos encargos fiscais do Estado, esse mesmo Estado que de certa forma intervém no setor no sentido de buscar a sua regularidade. Um camponês altamente produtivo, cujo trabalho agrícola torna-se cada vez mais intenso, que inclusive necessita, dependendo do setor, entregar temporariamente parte do processo de trabalho para trabalhadores de empreitada ou então entregar para os monopólios industriais a última etapa do processo de produção: a colheita”[27].
É desta maneira que o problema da semifeudalidade se coloca nas formações sociais coloniais e semicoloniais. Como afirma Mariátegui para o caso da formação social peruana, “A sobrevivência da feudalidade não deve ser buscada, certamente, na subsistência de instituições e formas jurídicas e políticas da ordem feudal. (...) A feudalidade ou a semifeudalidade sobrevive na estrutura de nossa economia agrária”[28]. A semifeudalidade deve ser buscada exatamente na articulação e na fusão entre as relações capitalistas e as relações feudais de produção, ali onde estas foram mobilizadas. Certamente, a existência desta articulação e sua função na estruturação de uma determinada formação social terão um papel determinante na constituição das formas superestruturais jurídicas e políticas desta mesma formação. No entanto, para compreender adequadamente este fenômeno, o essencial é a compreensão sua base econômica nas formas da produção social.
E, neste sentido, a semifeudalidade é um fenômeno propriamente moderno. Com efeito, se entendermos, como Marx, que a modernidade se define pela estruturação e pela dominação do modo de produção capitalista, as formas semifeudais são efeito da decomposição do modo de produção feudal pelo capitalismo, e da reprodução de elementos dos processos de trabalho servis em articulação com os processos propriamente capitalistas. No caso das formações sociais imperialistas, com um capitalismo autocentrado, a semifeudalidade é uma fase transitória de seu desenvolvimento, superada na medida em que o capitalismo, além de dominante, se torna o modo de produção principal, garantindo a reprodução de sua força de trabalho. Nas formações sociais coloniais e semicoloniais, a semifeudalidade é reproduzida por tendências estruturais e está essencialmente articulada ao desenvolvimento do capital imperialista, ocupando uma função central nestas formações ainda que o capitalismo possa chegar a se tornar o modo de produção principal em seu interior. Assim, é importante não confundir a semifeudalidade e o modo de produção feudal[29], ou colocá-la nos termos de uma forma de produção autônoma e “atrasada”, pelo menos na medida em que se compreende este “atraso” como uma determinação oposta ao desenvolvimento capitalista.
A situação semifeudal nos permite entender a extrema importância da categoria de formação híbrida na análise das formações sociais coloniais e semicoloniais. Em certo sentido é a semifeudalidade que dá um conteúdo preciso à categoria de formação híbrida e que nos permite compreender retrospectivamente a explicação de Marx. Com efeito, nestas situações híbridas elementos dos processos de trabalho servis são reproduzidos em fusão com elementos capitalistas. Por um lado, nestes processos de trabalho híbridos “o mais-valor não se extrai do produtor por coerção direta” – o que, sem dúvidas, não quer dizer sem recurso a outras formas de coerção extraeconômica – e “tampouco apresentam a subordinação formal do produtor ao capital”. Por outro, se o capitalismo não se apodera totalmente dos processos de trabalho, os elementos de servidão com os quais se funde são reproduzidos por ele e sob sua dominação. E, como diz Marx, estas formas híbridas “são reproduzidas aqui e ali na retaguarda da grande indústria”, coexistindo com formas específicas do desenvolvimento desta nas formações sociais coloniais e semicoloniais e sem que possam ser explicadas pelo recurso às categorias típicas da transição ao capitalismo.
O estudo das formações híbridas e da fusão de diferentes relações de produção em um mesmo processo de trabalho é a chave para o entendimento de traços essenciais das formações sociais coloniais e semicoloniais. O desenvolvimento imperialista no interior de formações sociais dominadas por modos de produção pré-capitalistas gera formas específicas de capitalismo que se articulam com estas formas de exploração pré-capitalistas, a articulação com as relações de produção servis tendo sido o principal caso histórico deste tipo. Nos países coloniais e semicoloniais o desenvolvimento capitalista não tem como limite a homogeneidade da formação social; pelo contrário, nestes o capitalismo reproduz incessantemente a heterogeneidade das relações de produção, fundindo temporalidades históricas diversas e intensificando as contradições no interior do processo de produção social. O hibridismo permitirá que elementos estruturais feudais sejam articulados com altos níveis de desenvolvimento técnico nos processos de trabalho, assim como permite que a fusão de relações de produção capitalistas e de relações de produção servis. É estão fusão do heterogêneo, esta complexa realidade de um arcaísmo moderno, que gera os traços aparentemente aberrantes da semifeudalidade.
As relações de produção capitalistas se exprimem necessariamente como uma relação de assalariamento, na qual uma força de trabalho “livre” vende a sei mesma para o proprietário dos meios de produção, de tal modo que “é justo dizer que a relação de produção capitalista é a relação salarial = relação de não detenção dos meios de produção e da força de trabalho = relação de separação da força de trabalho dos meios de produção”[30]. Uma vez separados dos meios de produção, os produtores devem se apresentar no mercado como força de trabalho disponível, isto é, como proprietários de nada além de sua força de trabalho. É nesta que relação que o capitalista, proprietário dos meios de produção, se apropria da força de trabalho por um contrato de compra e venda que é a relação salarial. Com a compra da força de trabalho, o capitalista se apropria de uma mercadoria especial, a única mercadoria capaz de criar mais valor do que contém, uma vez que essa mercadoria realiza processos de trabalho. No modo de produção capitalista, a apropriação da força de trabalho pelas classes dominantes está essencialmente conectada, assim, à separação entre os meios de produção e os produtores diretos. O assalariamento exprime esta separação entre o produtor e os meios de produção, qualquer que seja a forma que assuma, desde salário por tempo de trabalho ao salário por peça. Com o salário, o burguês restitui aos produtores uma parte mínima do valor criado em seus processos de trabalho com os meios de produção capitalistas, tornando possível que estes produtores continuem a se apresentar no mercado como uma força de trabalho. Assim, “a relação capitalista de produção é (...) uma relação onde capital e trabalho são contraditoriamente produtos dela mesma, ou seja, só é relação especificamente capitalista de produção a relação social de produção baseada no trabalho assalariado”[31].
Do mesmo modo, também as relações de produção pré-capitalistas articuladas diretamente com o desenvolvimento imperialista devem ser compreendidas através de uma análise da base dos processos de trabalho. É só com esta análise que se poderá compreender o sentido da conexão entre elementos servis e elementos capitalistas. Estas relações pré-capitalistas se exprimem de maneira particularmente intensa em muitas esferas da produção agrária moderna nos países coloniais e semicoloniais (mas, como veremos, não apenas nestas). Nesta, em muitos casos o camponês já não é mais um servo, se apresentando como produtor de mercadorias, e ao mesmo tempo é ainda um servo, mas um servo articulado ao capitalismo. Trata-se, assim,
“de um processo incrível de desenvolvimento da própria produção camponesa pelo capital para, inicialmente, fazer frente à pressão dos preços do arrendamento da terra. Depois, com o aumento da produtividade do trabalho camponês, esse processo procura, de um lado, continuar a reduzir o preço dos produtos agrícolas (uma vez que os preços crescentes do arrendamento da terra e dos diversos meios de produção na agricultura têm criado problemas para o agricultor capitalista) e, de outro lado, aumentar a massa geral da produção de alimentos, sem com isso ter que remunerar esse produtor com um lucro médio, nos moldes capitalistas”[32].
A semifeudalidade se exprime de diversas maneiras. Na produção agrária ela assume duas formas básicas, dois aspectos do mesmo processo. A primeira é relativa ao problema da renda da terra. Esta renda fundiária é uma forma suplementar de lucro, e portanto de apropriação dos produtos excedentes gerados pelo trabalho. Não é possível falar de renda da terra, em sentido próprio, para os modos de produção pré-capitalistas. Nestas estruturas econômicas as classes dominantes acumulam riquezas pela apropriação dos excedentes da produção mediante o monopólio da propriedade fundiária. Aqui, o excedente é entregue diretamente aos proprietários por uma a obrigação econômica imposta aos produtores como pagamento pela posse da terra. Em um sentido preciso, só é possível falar de renda da terra ali onde essa forma de apropriação dos excedentes for também uma forma de absorção do mais-valor produzido pelo capital em favor do proprietário fundiário[33].
Esta renda da terra se divide tipicamente em renda diferencial, resultante da concorrência, ou renda absoluta, resultante de seu monopólio capitalista. A renda diferencial é o suplemento permanente do lucro e da exploração da terra sob relações de produção capitalistas gerado pela diferença comparativa entre as condições de produtividade da terra. Ela existe, portanto, como consequência da concorrência capitalista e da produção capitalista na terra, e se apresenta ou sob uma forma primária, na qual esta diferença é a diferença da fertilidade dos solos independentemente do capital aplicado nestes, ou em uma forma desenvolvida, na qual a diferença é consequência direta do investimento em capitais para a melhoria da fertilidade dos solos. Uma vez que na produção capitalista os preços de mercado são regulados pela média do preço de produção dos solos, a renda diferencial é a diferença entre os preços de produção das unidades produtivas com condições superiores a este preço médio.
Quanto à renda absoluta, ela resulta do monopólio fundiário. Nesta forma de renda o proprietário absorve parte do mais-valor produzido pelo fato de que controla todas as terras produtivas disponíveis. Assim, uma determinada classe só dispõe as terras para a produção mediante o pagamento de um tributo, permitindo que mesmo os solos com as piores condições de fertilidade possam gerar renda[34].
Ora, estas formas usuais de renda da terra capitalista são, em muitos casos, articuladas a formas de renda da terra pré-capitalistas no interior do capitalismo. Estas podem se expressar, assim, como renda em trabalho, renda em produtos ou renda em dinheiro. A renda em trabalho é a forma mais simples da renda fundiária, na qual “o produtor direto trabalha parte da semana com instrumentos (arado, animais de carga, etc.) que lhe pertencem de fato ou de direito, cultivando o solo que lhe pertence, ao passo que nos outros dias da semana trabalha na propriedade do senhor, para este último e sem remuneração”[35]. Esta forma é, do ponto de vista do processo de trabalho, idêntica à servidão econômica. No entanto, no capitalismo ela passa a ser determinada pelo nível geral da renda fundiária. Aqui, a servidão se articula diretamente com o lucro capitalista e a produção do mais valor[36]. A figura do capitalista e a do proprietário fundiário se identificam na medida em que cobram dos camponeses sem terra ou com pouca terra um tributo na forma do trabalho, em muitos casos desenvolvido diretamente nos meios de produção capitalistas, para que estes possam produzir gêneros de subsistência para a reprodução de sua unidade familiar[37].
A renda em produtos, por sua vez, se apresenta como um desenvolvimento da renda em trabalho. Nela, “o mais-trabalho deixa de ser executado (...) sob a vigilância e a coerção diretas do senhor da terra ou de seus representantes; ao contrário, é o produtor direto, movido pelo poder das condições imperantes em vez da coerção direta e pela determinação legal em vez do chicote, que deve realizá-lo sob sua própria responsabilidade”[38]. Aqui o camponês entrega parte de seus produtos ao proprietário fundiário como pagamento pela concessão da terra, obrigação em muitos casos expressa na forma de um contrato jurídico, mobilizando para a produção principalmente a força de trabalho não assalariada da unidade familiar.
Por fim, a renda em dinheiro é a forma final do desenvolvimento das formas anteriores. Nesta o produtor deve pagar ao proprietário fundiário o valor dos produtos que produziu, na forma de dinheiro, ao invés dos próprios produtos. Ela pressupõe, portanto, que estes produtos sejam convertidos em mercadorias. “Por conseguinte, o caráter de todo o modo de produção é alterado em maior ou menor grau” – ainda assim, sem se confundir com a renda da terra baseada especificamente no modo de produção capitalista –, se tornando “decisiva a relação com os custos de produção, na qual entra agora uma quantidade maior ou menor de gastos em dinheiro”[39]. Aqui, o produtor continua a se apossar diretamente da terra, mantendo-se no interior de formas servis, mas seu tributo assume uma forma diretamente articulada com a produção e a circulação de mercadorias.
“Assim, estas três formas de renda pré-(não)-capitalistas da terra, em trabalho, em produto e em dinheiro, são cotidianamente criadas, recriadas e redefinidas pelo capital no seu desenvolvimento contraditório. São, muitas vezes, a forma que os capitalistas encontraram para produzir seu capital. São, por isso mesmo, parte componente do desenvolvimento capitalista geral na sociedade brasileira e não apenas figuras sociais de um passado histórico (...) da sociedade brasileira. Não se trata, portanto, de estudar e compreender estas formas de renda existentes na agricultura brasileira como restos, resíduos, etc., que serão extintos com o desenvolvimento do modo capitalista de produção, mas, sim, como formas não-capitalistas de produção desenvolvidas pelo próprio capital em face de seu desenvolvimento contraditório. Como tendência geral, o capital tende a impor as relações de trabalho assalariado a todas as atividades econômicas, mas isto é apenas uma tendência Sua lógica contraditória, entretanto, supõe e pressupõe a criação e a recriação daquilo que na aparência pode ser historicamente superado ou mesmo adiantado (...)”[40].
Aqui se fazem necessários alguns comentários sobre a questão da “pequena propriedade” e da produção camponesa. Já em no Anti-Dühring Engels aponta que durante do período do feudalismo, antes do surgimento da produção capitalista, já existia a “pequena empresa, em que os trabalhadores detinham a propriedade privada dos meios de produção: o cultivo agrícola dos pequenos agricultores, livres ou em servidão, o trabalho manual das cidades”[41]. Nesta forma, os instrumentos de trabalho são propriedade individual dos produtores. Portanto, a “pequena produção” não pode ser compreendida como uma forma de produção capitalista.
O modo de produção feudal, como vimos, se estruturava a partir de um conjunto específico de relações produção nas quais o produtor direto aparecia como estando de posse de seus próprios instrumentos de trabalho ao mesmo tempo em que era ligado por uma obrigação econômica a um senhor. A luta de classes no modo de produção feudal pôde chegar a reduzir consideravelmente o peso destas obrigações econômicas, permitindo que cada vez mais o produtor se aproprie dos frutos de seu próprio trabalho em maior proporção[42]. Esta “pequena produção” poderá persistir mesmo depois de suprimido o monopólio feudal da terra. Com o desenvolvimento do capitalismo, no entanto, ela será subordinada ao processo de acumulação capitalista e suas vias de desenvolvimento serão determinadas pela forma de capitalismo dominante na formação social em que se encontra.
Nos casos típicos do desenvolvimento capitalista autocentrado, a “pequena produção” camponesa dá lugar, como vimos, a processos de “kulakização”. Na medida em que o capitalismo se expande e subordina progressivamente a produção social às suas formas, os “pequenos produtores independentes” se encontrarão em um impasse. Os camponeses que se encontram em melhores condições de fertilidade dos solos ou possuem uma maior produtividade em sua unidade familiar tenderão a contratar progressivamente os camponeses sem terra ou com pouca terra para o trabalho em suas unidades agrícolas, podendo acumular patrimônio e se tornarem capitalistas. Os camponeses sem terra ou com pouca terra, por outro lado, se verão pressionados pela concorrência e cada vez mais tenderão a um processo de proletarização[43].
Assim, pensamos ser correto afirmar que a “pequena produção independente”, especialmente em sua forma agrária, é uma forma transitória entre o modo de produção feudal e o modo de produção capitalista, cujo reconhecimento é dificultado tanto pela alteração de determinados de seus aspectos em consequência de sua subordinação ao capitalismo quanto pelas formas jurídicas burguesas em que a “pequena produção” pode se apresentar. Como afirma Althusser,
“Com efeito, se juridicamente o pequeno produtor não está mais ligado à terra, como o servo, praticamente ele está. Ele está por outras ‘leis’ que não aquelas da servidão (ele o está por suas dívidas, etc.) (...). Certamente, [ o pequeno produtor] não é mais dominado pelas corveias e ele dispõe de sua força de trabalho ‘livremente’, mas ele é ‘detido’ por laços igualmente fortes, os de um endividamento que nunca acaba, etc. Mas isto não é o mais importante. O que subsiste intacto, desde o modo de produção feudal, é não apenas a parte da autossubsistência (o que é, aqui, muito secundário), mas a relação do trabalhador imediato que é o pequeno produtor independente a sua força de trabalho e à dos seus. Ora, esta relação, em pleno regime capitalista, onde reina o assalariamento, é uma relação que não passa por relações mercantis. Todas as reconstruções dos economistas burgueses ou marxistas para avaliar o valor da força de trabalho investida em uma exploração familiar são reconstruções fictícias, que negligenciam simplesmente o fato de que esta força de trabalho é um valor de uso que não é um valor de troca e, portanto, não tem valor. Todas as tentativas de contabilidade se deparam com esta pequena ‘dificuldade’, que assinala no entanto uma realidade crucial: a saber, que o pequeno produtor independente, longe de ser o protótipo do capitalista, longe de ser um capitalista, é um ‘corpo estranho’ no modo de produção capitalista, simplesmente porque ele representa uma forma herdada do modo de produção feudal e que resistiu à história e à evolução”[44].
O erro de Althusser nesta passagem é compreender a reprodução desta forma como uma “resistência” à evolução capitalista. Talvez seja este o caso na Europa, em que a “pequena produção” é mantida pela força social da pequena-burguesia, mas o fato é que para o caso das formações sociais coloniais e semicoloniais estas formas de produção são reproduzidas por tendências estruturais e, ainda que articuladas a processos de proletarização e à produção capitalista, não são passageiras – pelo menos não no que diz respeito à estrutura do capitalismo nos países dominados pelo imperialismo. Aqui, esta forma transitória não apenas persiste, mas faz parte da reprodução do próprio presente da modernidade colonial.
Assim, a “pequena produção independente” rural tem sua natureza parcialmente modificada pela formação social em que se insere. No interior de formações sociais de capitalismo autocentrado ela está diretamente subordinada ao capitalismo, segundo os esquemas da subsunção formal, enfrentando uma tendência contínua de decomposição e dando lugar geralmente a processos de “kulakização”. Por outro lado, no interior das formações sociais coloniais e semicoloniais, a “pequena produção rural independente” é continuamente reproduzida contrariando a tendência anterior e reafirmando diretamente seu caráter pré-capitalista. Segue daí que dentro da orientação teórica do materialismo histórico, não é possível falar em um “modo de produção mercantil simples”, que teria permanecido historicamente marginal, esta hipótese tendo realidade apenas no interior da ideologia burguesa que encontra em uma “sociedade de pequenos produtores” a gênese histórica do modo de produção capitalista.
Se esta primeira forma básica de expressão da semifeudalidade, nas formas híbridas da “agricultura familiar”, pode ser reconhecida imediatamente pela articulação direta de elementos das relações de produção servis e capitalismo, a seguinte nos apresenta uma fusão de ambas no interior de um mesmo processo de trabalho. Como vimos, o assalariamento é a forma de expressão inconfundível das relações de produção capitalistas, e ali onde não há assalariamento as relações capitalistas não estão plenamente desenvolvidas. Por outro lado, o assalariamento não exclui necessariamente a semifeudalidade. É sempre possível que assalariamento e relações de produção pré-capitalistas se articulem no interior do mesmo processo de trabalho, articulação que pode ser descrita de maneira precisa.
Ao menos desde o século XIX já se desenvolviam processos de trabalho na América Latina nos quais o produtor, ainda submetido a relações de produção feudais na posse da terra e no cumprimento de obrigações econômicas, recebia um salário. Seria, no entanto, um erro pensar que já se tratasse, então, da formação de um proletariado rural no sentido próprio e plenamente desenvolvido. O salário era responsável pela menor parte da remuneração do produtor, permanecendo subordinado a uma economia de subsistência baseada na posse direta da terra[45]. Trata-se de uma conexão essencial entre elementos servis e um processo parcial de proletarização. Assim, sob formas jurídicas capitalistas e combinadas com o assalariamento, podem ser reproduzidas relações de produção servis, novamente combinadas com as mais avançadas técnicas de produção.
“Com efeito, muitas vezes as grandes propriedades modernas utilizam meios pré-capitalistas para administrar sua mão de obra. A mobilidade dos fatores e o mercado de trabalho livre estão longe de consistir a realidade dominante [nestes casos]. O uso da coerção extraeconômica nas relações de trabalho aparece frequentemente durante o século XX, em contextos perfeitamente capitalistas. Não é raro que os trabalhadores sejam mantidos em um regime de exploração por dívidas que a modalidade de seu salário e o monopólio exercido pela venda patronal a preços usurários não permitem pagar. Deste modo, comumente os boias frias se veem obrigados a pagar sua ‘viagem’ ao local de trabalho da mesma maneira que os primeiros trabalhadores livres europeus que chegaram ao Brasil permaneciam sob o tacão de seu patrão até pagarem sua travessia pelo Atlântico”[46].
Seja nos processos de trabalho em que o assalariamento é combinado com a posse direta da terra, seja nos processos em que o assalariamento é corroído pela dívida levando à servidão do produtor, a coerção extraeconômica e as obrigações servis se articulam com processos de trabalho capitalistas. Neste último caso, com a servidão por dívida, trata-se de uma forma sob as quais se encontram a quase totalidade dos casos de “trabalho em condições análogas à escravidão” nas formações sociais latinoamericanas, mas que podem também existir em condições jurídicas consideradas legítimas pela ordem burguesa, a coerção extraeconômica pode tomar a forma de um contrato jurídico ou da violência direta à qual o produtor é submetido para saldar uma dívida impagável, fazendo do assalariamento um elemento secundário e o produtor, em muitos casos, trabalhando com instrumentos de trabalho próprios.
É a estas formas que Mao Tsétung, ao analisar a formação social chinesa do início do século XX, chamou de semiproletariado[47], constituindo uma das frações de classe de maior potencial revolucionário de então em função de suas condições de vida, e sendo também a força principal do processo revolucionário chinês. O semiproletariado, tal como Mao o caracteriza, envolve camponeses “semiproprietários”, camponeses pobres e pequenos artesãos (além dos semiproletários do comércio, que não poderemos analisar nos limites deste texto). Devemos apontar, além disso, que entre estes setores do semiproletariado devemos acrescentar aqueles envolvidos nas formas não-assalariadas do trabalho doméstico, assim como nas formas do trabalho doméstico que combinam em diversos níveis o assalariamento e a coerção extraeconômica, afetando muito particularmente o sexo feminino e aumentando a intensidade da opressão sobre as mulheres. Estas formas semifeudais do trabalho doméstico têm, como veremos, uma importância particular nas formações sociais latinoamericanas.
Já se apontou, com razão, que em razão da posição que ocupam na divisão internacional do trabalho, as formações sociais coloniais e semicoloniais são dominadas por uma tendência de predominância do capitalismo agrário subordinado ao imperialismo, cuja forma típica é o latifúndio agroexportador. Este desenvolvimento do capitalismo agrário, no entanto, não exclui a reprodução de formas pré-capitalistas, como vimos, mas, pelo contrário, se apoia nelas. “O resultado é a constituição de formações agrárias capitalistas, integradas ao mercado mundial por sua função essencial mas assumindo formas de tipo feudal”[48].
Mesmo nos casos excepcionais de países coloniais que realizaram uma reforma agrária sob o capitalismo, como no caso mexicano, e desenvolveram portanto processos de “kulakização”, o papel do latifúndio agroexportador permanece dominante e este reproduz sua ligação com as formas variadas da servidão moderna. No caso latinoamericano é geralmente a partir da grande propriedade fundiária que serão formados os grupos da burguesia burocrática e parte considerável dos quadros do aparelho de Estado. O desenvolvimento do capitalismo imperialista, no qual esta situação se baseia, tenderá ele mesmo a atribuir ao latifúndio este caráter híbrido, que articula servidão e produção moderna.
“O pólo chamado tradicional está dominado pelo pólo moderno a que complementa. O setor moderno não tende a fazer desaparecer o setor atrasado, que lhe é indispensável. O princípio da ‘unidade dos contrários’ atua plenamente aqui. O arcaísmo e as relações sociais pré-capitalistas mostram ser funcionais para a lógica capitalista dominante. Assim, a permanência de zonas subdesenvolvidas, verdadeiras reservas de mão de obra barata, o arcaísmo do cultivo de vegetais que produzem a baixo custo os alimentos da força de trabalho industrial, o ainda o crescimento não capitalista do setor terciário urbano, são outros tantos fenômenos que se explicam pela dominação do polo moderno sobre um polo tradicional que está subordinado a ele. Da mesma maneira, a monopolização das terras de agricultura de subsistência por grandes sociedades que produzem para o mercado, e até o restabelecimento de diversas formas de trabalho forçado, como no Chiapas mexicano de 1936 (para respondes a uma demanda crescente de exportações em razão do caráter ‘indefinido’ da proletarização camponesa), constituem outros tantos exemplos de relações de trabalho pré-capitalistas a serviço de empresas capitalistas modernas”[49].
Toda a formação social é, então, marcada por este hibridismo, que ordena seu processo de estruturação. Na medida em que estes processos de trabalhos híbridos ocupam uma função essencial na reprodução das formações sociais coloniais e semicoloniais, é toda a estrutura que é modificada por eles, mesmo que ao longo do desenvolvimento histórico eles possam ter sua zona de extensão significativamente reduzida. A presença das formas híbridas no mundo colonial pode ser reduzida, e em muitos casos o é, pelo desenvolvimento das forças produtivas e das formas próprias da grande indústria. No entanto, elas não deixam de ser reproduzidas em sua retaguarda e não como um “resto” ou uma “sobrevivência”, mas como uma esfera essencial.
É neste sentido que afirmávamos que o raciocínio da “passagem ao limite” não pode ser utilizado para as formações sociais coloniais e semicoloniais. Nas formações sociais de capitalismo autocentrado, a restrição das formas semifeudais indica, como de fato se deu, a sua supressão e a homogeneização da formação social sob o modo de produção capitalista. Nas formações sociais coloniais e semicoloniais, as formas semifeudais podem ser restringidas, mas apenas parcialmente. Por sua função estrutural, elas tendem a ser reproduzidas pelo próprio processo de acumulação do imperialismo, criando uma esfera semifeudal que está imediatamente articulada com todo o processo de produção social. É por isto que estas formações são chamadas semicoloniais e semifeudais, o imperialismo e a reprodução de formas pré-capitalistas formando os dois aspectos de um mesmo processo. A categoria materialista de formação híbrida nos permite, ao fim, compreender mais precisamente a natureza destas formações sociais e da articulação essencial entre imperialismo, semifeudalidade e burocracia que as domina, dando um conteúdo preciso à categoria de capitalismo burocrático.
Exemplo V
O desenvolvimento do capitalismo imperialista no Brasil leva a transformações estruturais no interior desta formação social no início do século XX.
É verdade que já desde o final do século XIX é possível identificar uma grande heterogeneidade na formação social brasileira. Enquanto a regressão feudal decompõe o modo de produção escravista e torna as relações de produção servis as relações principais e dominantes no quadro geral, zonas de produção capitalista se desenvolvem em ritmo crescente em especial na região sudeste, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Mas são, sobretudo, as crises mundiais no período da Primeira Guerra e do pós-1929 que abrirão importantes espaços para o desenvolvimento destas zonas capitalistas ainda desarticuladas. É neste período que se desenvolvem a série de acontecimentos que, ao longo de um período de décadas, poderiam caracterizar a “revolução burguesa” no Brasil. Assim, o “capitalismo brasileiro avança devagar, aproveita as brechas para avanços mais rápidos, transige sempre com as relações políticas mais atrasadas e as econômicas que as asseguram, manobra, recua”[50]. A sua burguesia é relativamente fraca, buscando sempre uma acomodação com as forças dominantes da formação social brasileira, isto é, como o latifúndio agroexportador, sendo pressionada pela luta proletária, por um lado, e pelo imperialismo, por outro.
Os saldos no comércio externo obtidos com a exportação de café aumentam significativamente desde o fim do século XIX, permitindo uma limitada acumulação de capitais. No mesmo período, os monopólios financeiros internacionais encontram as condições para a exportação de capitais ao Brasil, aplicando aqui seus investimentos, se beneficiando do favorecimento do aparelho de Estado controlado por latifundiários e por uma reduzida burguesia compradora. As ferrovias, os telégrafos, os serviços públicos são desenvolvidos pelos capitais imperialistas, especialmente britânicos. Ao mesmo tempo, os empréstimos tomados ao capital financeiro submetiam a formação social brasileira a uma dívida externa progressiva[51]. Desde o início o desenvolvimento de uma incipiente burguesia nacional se encontrava bloqueado pela força dos monopólios imperialistas.
No período de 1914-1918 a guerra impôs uma série de dificuldades importantes à circulação internacional de mercadorias. Com a redução da circulação de bens manufaturados estrangeiros, a produção local é impulsionada pela substituição de importações, gerando a possibilidade para o surgimento de uma pequena esfera de atividade industrial. Os investimentos anteriores canalizados para as importações são, agora, deslocados como capitais para a indústria. A burguesia nacional começa a se constituir como classe. Os saldos no comércio externo se ampliam progressivamente, assim como o investimento na produção industrial. Este desenvolvimento permanece, no entanto, bastante limitado, gerando um parque industrial disperso que atende a mercados consumidores locais restritos, organizado em muitos casos nas formas da manufatura ou mesmo do artesanato. O fim da guerra marca o retorno processual tanto dos investimentos imperialistas quanto da prioridade das atividades agroexportadoras, limitando ainda mais este desenvolvimento limitado.
No período do pós-1929 se abre uma nova fase de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, a maior e mais importante até este momento do processo histórico. As importações caem novamente e de maneira grave assim como as exportações, levando a uma crise generalizada do setor agroexportador, repetindo em nível mais intenso uma importante transferência de investimentos da agricultura para a produção industrial. É nesta conjuntura que se organiza o movimento armado de 1930, com a tomada do poder de Estado por um movimento dirigido pela pequena-burguesia, pela nascente burguesia industrial e por frações até então subordinadas do latifúndio.
A revolução de 1930 abre um período de intensa modernização da formação social brasileira e, com esta modernização, uma intensificação das lutas entre um proletariado crescente e cada vez mais organizado e a burguesia. A partir de 1937, com a recomposição do aparelho de Estado em formas fascistas – com a centralização do poder político nas funções executivas, a corporativização e a militarização da sociedade – a ditadura do Estado Novo se impõe para combater diretamente o avanço proletário, organizando a partir do Estado o desenvolvimento do capitalismo brasileiro sem romper com o latifúndio e avançar uma reforma agrária que poderia desbloquear o desenvolvimento capitalista. Diferentemente da forma típica da revolução burguesa nas formações sociais de capitalismo autocentrado, em que a burguesia se apoiava nas focas populares para tomar o poder de Estado e romper com o feudalismo, aqui a burguesia moderniza a economia sem romper a aliança com o latifúndio, voltando o poder do Estado contra as classes populares. Forma-se, assim, um desenvolvimento capitalista burocrático[52], que coexiste e se articula com o latifúndio colonial e suas relações de produção servis.
Neste período o Estado operava diretamente as reformas que poderiam impulsionar o desenvolvimento do capitalismo, expressando a dominação política da burguesia. Este desenvolvimento capitalista era operado ao mesmo tempo em que se intensificava a exploração e a repressão do proletariado, por um lado, e que se instituía uma legislação corporativista de pretenso caráter “trabalhista”, por outro. A necessidade desta forma de Estado se impunha, uma vez que o nível dos salários deveria ser mantido abaixo do necessário para a reprodução da força de trabalho e a via de uma ampliação rápida do mercado interno por uma reforma agrária não era uma opção.
“Os princípios do reformismo que marca a legislação, na época, definem uma posição nacionalista tíbia, que avança na fase de crise do imperialismo para declinar depois. Tais princípios destinam-se a facilitar a capitalização, a reter no interior parcela maior da acumulação, a utilizar o mercado interno, conciliando embora com o seu estreitamento pelo latifúndio feudal, como elemento propulsor dele. No desenvolvimento histórico brasileiro, trata-se de uma fase em que a capitalização tinha condições para conviver com o latifúndio, que configurava a área pré-capitalista aqui”[53].
Este período apresenta um crescimento significativo da produção industrial e, com ela, da produção capitalista. Se crise geral do imperialismo e o envolvimento do imperialismo estadunidense em particular na Segunda Guerra Mundial, principal potência imperialista no domínio da economia brasileira de então, tornaram viáveis este desenvolvimento burocrático, é importante lembrar que nem por isso o período do Estado Novo anuncia uma ruptura radical com o imperialismo. Em todo caso, com o fim da guerra em 1945 a exportação de capitais do imperialismo estadunidense volta a se intensificar e a pressionar o desenvolvimento capitalista da formação social brasileira.
É neste contexto que o imperialismo volta a se apresentar como força dominante no desenvolvimento capitalista brasileiro já nos anos 1950, a política econômica e financeira sendo entregue diretamente ao controle dos monopólios multinacionais e com a construção de um “plano de desenvolvimento” baseado no investimento de capitais imperialistas. Nas ondas de mobilizações populares dos anos 1950-1960 coexistem as forças proletárias, camponesas, a pequena-burguesia, a burguesia nacional e mesmo fração da burguesia burocrática formada a partir do ciclo econômico dos anos 1930 em uma reação contra a retomada do avanço imperialista. No entanto, esta onda é derrotada com o golpe militar de 1964, com a inevitável recomposição da aliança das classes dominantes: contra o proletariado, a fração burocrática da burguesia opta por se associar diretamente ao imperialismo, arrastando consigo grande parte da burguesia nacional e se aliando com a burguesia compradora e o latifúndio. A dominação de uma orientação revisionista no Partido Comunista do Brasil (PCB) de então teve papel importante nesta derrota, tendo contribuído para a decomposição política de ideológica do proletariado, apesar do início da reconstrução de um novo Partido marxista-leninista independente com o PC do B nos anos 1960.
“A partir de 1964, e particularmente a partir de 1968, quando a ditadura se aprofundou, eliminando qualquer resquício de franquias democráticas, o Estado brasileiro e a economia estatal, entretanto, trabalham para as multinacionais, e a área estatal da economia passou a subsidiar a área multinacional da economia. Era a revelação do caráter essencial do regime que necessitaria instalar o terror para assegurar a manutenção do modelo adotado e que seria aperfeiçoado adiante sob a vigência do mesmo terror. Apresenta-se, então, na estrutura da economia brasileira, como anomalia, pois derivada de condições exógenas, de imposições do imperialismo, o fenômeno do segmento de capitalismo monopolista de Estado, inteiramente em defasagem com o desenvolvimento natural e endógeno da economia do país. E começavam as empresas estatais a apresentar graves problemas de administração, que levam a Companhia Siderúrgica Nacional à beira da falência em 1989, e comprometem profundamente o funcionamento da Petrobrás como da Eletrobrás. Tratava-se de fornecer o Estado, com prejuízo, o aço e energia para que as multinacionais apresentassem grandes lucros. Era um capitalismo monopolista de Estado estranho, que operava em favor do imperialismo, pois”[54].
Ao longo de todo este período, o desenvolvimento do capitalismo burocrático opera transformações também nas relações de produção feudais existentes na formação social brasileira. Como no caso do desenvolvimento capitalista brasileiro em geral, o avanço deste modo de produção já vinha produzindo transformações na produção agrária desde o fim do século XIX, ainda que de maneira embrionária e limitada. Com a decomposição das formas semi-escravistas nas regiões produtoras de café ao fim do século XIX, o latifúndio é obrigado a recorrer à força de trabalho imigrante para a realização de seu processo de acumulação. Inicialmente se tenta organizá-la nas formas da “parceria”. Nela, sob a aparência jurídica de uma forma de trabalho capitalista livre, dominam as relações de produção servis[55]. No entanto, os imigrantes europeus tendem progressivamente a recusar estas formas de servidão, obrigando o latifúndio a recorrer a novas formas de organização do processo de trabalho.
São introduzidas formas de pagamento por tarefa, entregando à responsabilidade dos colonos uma determinada quantidade de pés de café, os produtores sendo remunerados pela quantidade de café colhido. Mas a partir de 1880, com os contratos de formação de cafezais, cada colono ou empreiteiro recebia uma parcela de terra pronta para o cultivo, sendo responsáveis pelo plantio e pela poda dos cafezais, tendo direito a se apropriarem da primeira colheita destes, plantando entre este processo gêneros de subsistência que devem em muitos casos dividir com o latifundiário. O colono mantinha também o direito de manter pequenas criações de animais para si, podendo vender seu produto[56]. Este processo de trabalho já é, em parte, um processo de proletarização, com o pagamento por peça dos trabalhos executados. Ele mantém, no entanto, a posse direta dos meios de produção pelo produtor com a satisfação de uma obrigação econômica ao proprietário, mediada por uma coerção jurídica. Esta forma híbrida tornou possível uma rápida expansão do latifúndio cafeeiro e conhecerá uma ampliação significativa, passando a empregar parte considerável da força de trabalho nacional.
No entanto, as alterações mais significativas na produção do latifúndio se desenvolvem a partir do período de 1930, associadas ao mesmo processo que abre a via do desenvolvimento do capitalismo burocrático no Brasil. Com a crise do imperialismo, os preços dos bens primários fornecidos pelo latifúndio ao mercado externo caem. Além disso, com a absorção de uma parcela maior da força de trabalho disponível pelo processo de industrialização, se reduz a faixa de força de trabalho disponível ao latifúndio na forma de camponeses sem terra dispostos à integração em relações de produção servis. Assim, o latifúndio reorganiza em parte seus processos produtivos, investindo capitais no aumento de sua produtividade.
Parte dos latifundiários aumenta extensivamente sua produção pela apropriação de novas terras, enquanto outra pare vende parte de suas terras e investe em novos instrumentos para o processo de produção. É a partir desta recomposição do latifúndio colonial nos anos 1930 que começa a surgir uma nova burguesia rural[57]. Esta recomposição, no entanto, não significa uma decomposição do latifúndio. O capitalismo agrário se desenvolve, aqui, seguindo a tendência geral para as formações sociais coloniais e semicoloniais: ele se articula com os processos de produção pré-capitalistas e se apoia nestes para impulsionar a acumulação de capitais.
É neste período que se inicia a expansão das usinas de açúcar, “usinas cercadas de seus latifúndios próprios”, que tendem a acumular cada vez mais terras na corrida pela redução de seus custos de produção[58]. Esta concentração fundiária da produção usineira se opera em um ritmo acelerado, arruinando os pequenos produtores que antes ocupavam as terras do latifúndio em um processo de trabalho servil e restringindo ainda mais a oferta de gêneros de subsistência para os mercados consumidores locais. O desenvolvimento do capitalismo agrário segue, em toda a formação social brasileira, a tendência geral encontrada no modelo das usinas de açúcar. A recuperação do imperialismo no período do pós-guerra e a consequente elevação dos preços dos gêneros de exportação no mercado internacional só farão agravar esta situação.
Este desenvolvimento do capitalismo agrário opera como uma versão colonial da “via prussiana”. Se em alguns casos os camponeses são expulsos das terras do latifúndio com o desenvolvimento da produção capitalista, em outros “ocorreu o caso de as usinas permitirem que os foreiros permanecessem nas suas posses, chamadas localmente de ‘sítios’, com a condição de que destruíssem os pomares, colhessem as lavouras e se tornassem plantadores de cana”[59].Do mesmo modo, a concentração fundiária gerada pelo desenvolvimento capitalista no campo se apoiou na ampliação da esfera da produção de minifúndios alocados nas piores terras, como forma de fixação de reservas de força de trabalho disponível, pelo latifúndio. O latifúndio capitalista, portanto, concede uma parcela de terra aos camponeses, mas parcelas de terra cujo cultivo não produz o necessário para a reprodução da força de trabalho agrária[60].
O desenvolvimento do capitalismo agrário é indissociável do desenvolvimento das formas híbridas e da transição das formas feudais pré-capitalistas às formas semifeudais capitalistas ou, como fiz Alberto Passos Guimarães, de formas “semicapitalistas” e semifeudais.
“Como formas pré-capitalistas de renda entendemos aquelas que encerram forte vínculo extraeconômico de subordinação do cultivador ou do trabalhador ao dono da terra. Entre estas formas pré-capitalista estamos considerando as que obrigam o trabalhador à prestação pessoal de trabalho gratuito (renda em trabalho) ou a paga (pelo uso da terra ou pelo uso da força de trabalho, como se queira entender) em produtos (renda em produto), e não em dinheiro. A forma típica da prestação pessoal ou da renda em trabalho é o ‘cambão’, isto é, a obrigação que têm os pequenos cultivadores, foreiros ou não, de darem um dia de trabalho gratuito por semana ao dono da terra; mas além desta existem outras formas e, por extensão, pode ser incluído entre a prestação pessoal o trabalho gratuito que os familiares realizam, como coadjuvantes do chefe da família nos contratos que englobam tais obrigações. (...) A categoria à que desejamos aludir é a dos familiares não remunerados envolvidos nas relações contratuais entre o chefe da família e o dono da terra (...).
A forma típica de paga em produtos é a meação, ou seja, uma relação de trabalho em que o cultivador paga a terra que utiliza (ou é paga pelo cultivo que efetua, conforme se queira interpretar) com uma quantidade de produtos que deveria corresponder (e raramente corresponde) à metade da colheita. Em ambos esses casos, tanto nas formas da prestação pessoal ou renda em trabalho, como nas formas de renda em produto ou paga em produto (na primeira mais do que na segunda) o cultivador está vinculado à terra por obrigações que não são somente de natureza econômica, mas também de natureza extraeconômica; ele trabalha sob coação – de só plantar o que o dono da terra impõe, de vender ao dono da terra sua produção, etc., etc.
Entendemos por formas semicapitalistas de renda, aquelas em que o cultivador goza de mais liberdade do que nas pré-capitalistas, pois é livre de pagar o aluguel da terra, como foreiro, rendeiro ou arrendatário, com certa quantia em dinheiro (renda em dinheiro ou renda monetária), mas não está livre de outras imposições do dono da terra acerca do plantio, da venda, da colheita, etc.
Ainda neste caso, o cultivador não é independente, não é autônomo, como só passará a ser quando realmente lhe cabem todas as decisões na administração ou na gestão de seu estabelecimento, isto é, quando se torna um arrendatário já do tipo capitalista.
Obedecem a semelhantes graus de mutação, tendo em vista a importância da liberdade desfrutada pelo cultivador, as diferenças estabelecidas entre o salariado quase-capitalista e o salariado capitalista. No primeiro, o trabalhador recebe um salário em dinheiro, mas está preso ainda a uma ou a várias imposições restritivas de sua liberdade. A forma típica deste salariado é a 'condição’, isto é, a obrigação que tem o cultivador ao qual é cedido, alugado ou aforado um pequeno trato de terra, de dar uns tantos dias de trabalho por semana ou por mês, para o dono da terra, mediante um certo salário”[61].
Estas formas semifeudais se desenvolveram lentamente pela articulação com o desenvolvimento capitalista, coexistindo durante muito tempo com as formas feudais típicas da parceria, do colonato e da meação (e suas derivações, como a terça, a quarta, etc.). Estas formas eram predominantes na produção agrária brasileira durante toda a primeira metade do século XX, o assalariamento constituindo uma forma marginal em relação a estas. É verdade, além disso, que as formas semifeudais persistiam, como ainda persistem, mesmo nos meios urbanos, sobretudo associadas às formas de servidão por dívida e nos processos de trabalho doméstico não-assalariado ou que articulam o assalariamento e a coerção extraeconômica. Assim, podemos afirmar que até meados dos anos 1960, em que a população brasileira ainda era majoritariamente rural[62] e sendo as formas feudais e semifeudais eram as principais na organização dos processos de trabalho agrícolas, as formas de servidão e semi-servidão eram predominantes nos processos de trabalho da formação social brasileira, sob a dominação do modo de produção capitalista.
A análise do caráter feudal e semifeudal das relações de produção da formação social brasileira nesta fase de seu desenvolvimento deu lugar a uma série de debates e de erros que é importante analisar, uma vez que estes erros – que se exprimiram seja em uma formulação economicista, seja em uma formulação historicista – tiveram e seguem tendo uma função ideológica fundamental na elaboração da linha revisionista no Brasil.
A primeira formulação, de caráter economicista, é aquela elaborada por Octavio Brandão em Agrarismo ou industrialismo, de 1926. Em Agrarismo ou industrialismo Brandão tenta oferecer uma análise nos levantes de 1924 contra a República Velha e a ordem dominante do latifúndio agroexportador. A obra de Brandão tem um valor histórico por ser a primeira tentativa de uma análise da formação social brasileira a partir do materialismo histórico. No entanto, ela contém erros graves que tiveram efeitos teóricos e ideológicos importantes sobre o movimento comunista.
Brandão afirma a tese, correta, de que a economia brasileira está diretamente subordinada ao imperialismo e que este está associado ao latifúndio baseado em relações de produção servis. Neste período, os interesses imperialistas na formação social brasileira são estão ligados ao investimento de capitais nos processos de circulação dos produtos de exportação do latifúndio. Esta subordinação da economia brasileira leva diretamente ao empobrecimento da pequena burguesia e ao aumento da exploração do proletariado. O latifúndio constitui a força social dominante, sua dominação política se organizando nas instituições da república oligárquica do início do século XX. Brandão associa, em repetidos momentos, o latifúndio ao “medievalismo”, a uma etapa histórica pré-capitalista que, em associação com o imperialismo, impediria o desenvolvimento nacional das forças produtivas e do capitalismo. Agrarismo e industrialismo aponta a relação direta entre o latifúndio e o capital financeiro que opera os capitais estrangeiros no Brasil[63] neste período, apontamento por si só correto, mas do qual Brandão retira teses erradas.
Brandão afirma, assim, a tese de que a formação social brasileira é determinada pela contradição antagônica entre o latifúndio e os “grandes industriais”, contradição que Brandão tende a apontar como a contradição principal desta formação. A aliança entre latifúndio e imperialismo, ao impedir o desenvolvimento da indústria e do capitalismo, se colocaria assim em uma oposição frontal aos interesses da burguesia. Agrarismo e industrialismo chega a afirmar que no Brasil existem “dois mundos que se chocam: o feudalismo e o industrialismo. O industrialismo despedaçará o feudalismo. E o socialismo despedaçará o industrialismo burguês”[64]. O tenentismo e as revoltas de 1924 seriam uma expressão deste antagonismo, a direção pequeno-burguesa do movimento exprimindo indiretamente os interesses da burguesia industrial.
Aplicando de maneira mecanicista o materialismo histórico, Brandão afirma que a tendência de desenvolvimento da formação social brasileira se orienta no sentido da consolidação desta burguesia industrial, se afirmando na tendência de “vitória do industrialismo sobre o agrarismo; a vitória da burguesia industrial sobre os agrários; a vitória da burguesia progressista sobre os elementos rotineiros”[65]. É verdade que, por outro lado, Agrarismo e industrialismo afirma também a existência de uma série de vínculos entre esta burguesia industrial e o latifúndio. Estes vínculos, no entanto, são todos de natureza conjuntural e não estrutural[66], a sua posição podendo oscilar sob a pressão de outras forças sociais que a levem a realizar seus interesses de maneira consequente.
Brandão conclui daí que a principal tarefa do proletariado e de seu Partido seria construir uma aliança com a pequena-burguesia em revolta, radicalizando a pequena-burguesia e pressionando a burguesia industrial de modo a derrubar a ordem política do latifúndio e impulsionar o desenvolvimento capitalista do Brasil como condição para uma futura revolução proletária, levando, assim, à vitória do proletariado contra a pequena-burguesia e a burguesia em um momento posterior. Brandão afirma que
“Temos, pois, em perspectiva, sérias batalhas de classes, isto é, uma situação revolucionária. Se os revoltosos pequeno-burgueses souberem explorar a rivalidade imperialista anglo-americana e a luta entre os agrários e os industriais, se procurarem uma base de classe para a sua ação, se o proletariado entrar na batalha e se essas contradições coincidirem com a luta presidencial e as complicações financeiras, será possível o esmagamento dos agrários. Dada esta situação objetiva, a vitória da pequena-burguesia aliada ao grande burguês industrial e, posteriormente, a vitória do proletariado, serão meras questões subjetivas. Dependerão da capacidade dos revoltosos pequeno-burgueses e da dos revolucionários proletários”[67].
É notável que Brandão estabelece uma oposição entre o capital financeiro e o latifúndio, de um lado, e a burguesia industrial e a pequena-burguesia de outro, e ao mesmo tempo que atribui de maneira unilateral ao desenvolvimento da indústria pesada a constituição das condições objetivas para o socialismo[68]. As teses de Brandão são, assim, francamente dualistas e economicistas. Dualistas na medida em que as relações de produção feudais ligadas ao latifúndio e as relações de produção capitalistas são apresentadas como relações essencialmente antagonistas, afirmando uma oposição mecânica entre o “medievalismo” e a modernidade. Economicistas na medida em que afirmam unilateralmente a prioridade do desenvolvimento das forças produtivas como condição para a ruptura com o “atraso”, fazendo deste desenvolvimento a condição do desenvolvimento proletário e do movimento comunista.
Em 1957, Brandão escreve uma autocrítica em que relaciona diretamente as teses de Agrarismo e industrialismo e os erros programáticos do PCB no período anterior. Segundo ele, o PCB “não conseguiu compreender o caráter da revolução, suas etapas e suas forças motrizes. SUBESTIMOU a importância dos camponeses. SUPERESTIMOU o revolucionarismo pequeno-burguês em geral”, não compreendendo o processo de transformação da revolução anti-imperialista e antifeudal em revolução socialista, ao mesmo tempo assumindo que “o autor destas linhas é um dos responsáveis por esses erros. As raízes deles estão na obra Agrarismo e industrialismo”[69]. Brandão afirma também que o livro reproduz mecanicamente a oposição entre o feudalismo e a burguesia do processo da Revolução Francesa, além de subestimar a questão da direção proletária do processo revolucionário e o problema da aliança operária e camponesa.
Ora, o que é curioso é que em sua autocrítica Brandão se limita a apontar estes desvios, sem aprofundar sua análise, apontando apenas que sua razão está em sua própria origem pequeno-burguesa. Ainda em 1957 – e, portanto, depois do desenvolvimento do capitalismo burocrático, da associação da “burguesia industrial” ao imperialismo e do desenvolvimento de relações semifeudais na articulação do latifúndio ao desenvolvimento do capitalismo agrário –, Brandão não retifica suas teses sobre oposição entre o imperialismo e o desenvolvimento da indústria, entre o latifúndio e o desenvolvimento capitalista.
Os efeitos teóricos das teses dualistas de Brandão, apesar do relativo esquecimento a que foi legado Agrarismo e industrialismo, tiveram um papel importante para a formação ideológica do revisionismo brasileiro e, em muitos sentidos, continuam a orientar muitas de suas organizações, como no caso da atual legenda oportunista que usurpou o nome do PC do B. Estas teses foram desenvolvidas de maneira relativamente independente em várias formações sociais latinoamericanas, implicando sempre uma oposição ente o setor da produção capitalista de o latifúndio feudal para defender uma aliança estratégica com a “burguesia industrial”, atualmente encontrada pelo dualismo na figura da burguesia burocrática.
Como vimos, as relações de produção servis foram intensificadas e articuladas com o desenvolvimento capitalista associado ao imperialismo, sendo possível afirmar que o setor “moderno” e o setor “atrasado” da economia estão essencialmente inter-relacionados. As teses dualistas limitam o movimento proletário a operar como a “ala esquerda” do desenvolvimento capitalista nas formações sociais coloniais e semicoloniais. As razões do surgimento dessas teses podem ser explicadas pelo fato de que “a esquerda latinoamericana surgiu, historicamente, como ala esquerda do liberalismo e sua ideologia foi, consequentemente, determinada pelas categorias ideológicas básicas elaboradas pelas elites liberais do século XIX (...). E o dualismo era um elemento essencial deste sistema de categorias”[70], o feudalismo colonial representando o atraso com o qual deveria se romper e o capitalismo representando a modernização que se deveria atingir.
A este desvio economicista se opôs, inicialmente, um outro desvio, um desvio historicista igualmente revisionista em seus efeitos teóricos e ideológicos. Trata-se das teses de Caio Prado Júnior, especialmente em A Revolução Brasileira, de 1966, segundo as quais a formação social brasileira já não dependeria de uma revolução agrária e anti-imperialista (em 1966!), sendo um tipo de formação social radicalmente diferente daquelas em situação colonial e semicolonial[71].
Prado Júnior nega abertamente a existência de relações de produção servis em qualquer período da formação social brasileira, as formas da parceria e da meação agrárias sendo reduzidas a uma “simples relação de emprego, com remuneração in natura do trabalho”, identificando a parceria “ao salariado, e constitui, pois, em essência, uma forma capitalista de relação de trabalho”[72]. Prado Júnior simplesmente nega, contrariando a realidade, a existência de uma esfera de produção camponesa baseada na ocupação parcelária da terra, afirmando de maneira unilateral que a grande propriedade fundiária baseada no “trabalho coletivo” sempre foi o elemento estrutural básico da formação social brasileira, primeiramente com o trabalho escravo e depois com o trabalho livre – “embora nem sempre o pagamento e a remuneração desses serviços (trabalho prestado) se fizessem em dinheiro (...), assumindo com frequência formas mistas e mais ou menos complexas, como o pagamento in natura, concessão do direito de plantar por conta própria alguns gêneros de subsistência, etc.”[73]! Descobrimos, assim, não só que o camponês nunca existiu no Brasil, mas que a concessão de parcelas de terra aos produtores diretos constitui uma relação de produção capitalista.
Esta confusão é possível porque Prado Júnior confunde a categoria científica de relação de produção com a noção empirista de “relação social”. Com efeito, enquanto as relações de produção devem remeter a uma estrutura em que se organizam e a formas específicas de relação entre os produtores e os proprietários, mediadas necessariamente pelos meios de produção, a noção de “relação social” tem um caráter distinto.
Quando Prado Júnior identifica, por exemplo, a meação com uma “simples relação de emprego, com remuneração in natura do trabalho”, ele só pode fazê-lo por ignorar o problema da forma específica da relação entre o produtor e o meio de produção. A posse da terra pelo produtor se torna um elemento dispensável, o central sendo a “remuneração in natura do trabalho”. Não poderia se tratar de servidão, segundo Prado Júnior, uma vez que não se trata de um caso de agricultura de subsistência (forma agrária que, como vimos, de Nelson Werneck a Celso Furtado é massivamente identificada no interior da formação social brasileira), e não se trata de agricultura de subsistência porque o produtor depende da concessão da terra por um proprietário – exatamente aqueles elementos pelos quais, como vimos, o materialismo histórico define a servidão.
Mas o fundamental no argumento de Prado Júnior é que se trata a cada caso de formas já inseridas no “contexto” da produção capitalista e, portanto, de formas já especificamente capitalistas. É esse o sentido da noção empirista de “relação social”: a “relação social” se define por seu “contexto” histórico, e na medida em que uma determinada forma se encontra em um “contexto” capitalista ela é, por isso mesmo, capitalista.
O desconhecimento completo do conteúdo científico da categoria de relação de produção se torna evidente. É daí que Prado Júnior retira suas teses sobre o caráter diretamente socialista da Revolução Brasileira, defendendo a linha estratégica da estatização da grande propriedade fundiária no lugar de uma revolução agrária[74]. Uma vez que a formação social brasileira é definida como uma formação puramente capitalista e os processos de proletarização são assumidos como de natureza análoga àqueles das formações sociais de capitalismo autocentrado, tendendo à construção de uma formação social capitalista homogênea, toda a linha política estará voltada para o impulsionamento das demandas de classe proletárias. Uma vez que estas demandas partem de um nível análogo àquele da remuneração da força de trabalho, que o rebaixamento do nível desta remuneração é um caráter estrutural das formações sociais coloniais e semicoloniais e que este se apoia na reprodução de formas híbridas, caímos em um acúmulo de forças indefinido e recusamos as tarefas essenciais de construção da aliança camponesa e operária ao assumirmos as teses historicistas.
O desvio “de direita” de Brandão é “corrigido” com o desvio “de esquerda” de Prado Júnior, mas este desvio “de esquerda”, ignorando as forças motrizes reais que poderiam impulsionar a Revolução Brasileira, acaba por terminar em um reformismo magro que encontra no impulsionamento da “participação popular” e das demandas econômicas imediatas a solução para a superação do capitalismo no Brasil[75] e na espera infinita por um acúmulo de forças do proletariado que o século XX mostrou muito bem a que leva.
Os trabalhos de Nelson Werneck Sodré e, parcialmente, de Alberto Passos Guimarães nos parecem conter os elementos para a retificação de ambas estas teses revisionistas para o problema das relações de produção no Brasil da primeira metade do século XX.
Em todo caso, e é extremamente importante apontá-lo, a situação semicolonial e semifeudal da formação social brasileira passa por alterações importantes a partir do fim dos anos 1960 que, sem transformar o processo em suas contradições fundamentais, no entanto fazem com que ele assuma uma figura significativamente diferente e que deve ser analisada como tal.
O desenvolvimento do capitalismo burocrático sob a ditadura militar de 1964 teve como um de seus objetivos principais o impulsionamento da industrialização do campo. Esta industrialização foi, em grande parte, uma resposta da burguesia às grandes ondas de lutas camponesas dos anos 1950-1960. De maneira análoga ao desenvolvimento da grande indústria na Europa do final do século XIX, tratava-se de um meio para suprimir as demandas dos produtores por melhores condições de trabalho e de reprodução sem diminuir a produtividade e a capacidade de acumulação capitalistas. Em conexão com este processo de mecanização relativa dos campos se opera uma verdadeira rodada de acumulação primitiva no meio rural brasileiro, pela qual os produtores rurais foram expulsos e separados da terra, sendo transformados parcialmente em uma força de trabalho “livre”.
O caso do salto no desenvolvimento das usinas de açúcar, em especial na região nordeste, é mais uma vez exemplar. Esse avanço da apropriação capitalista das terras é descrito de maneira muito precisa por Robert Linhart.
“A reciprocidade dos patrões de cana [ao fim dos anos 1960] teve consequências absurdas, inclusive para eles próprios. Apossando-se de todas as parcelas individuais das culturas de subsistências – ‘roças’ – e desencadeando assim deliberadamente um enorme êxodo que lançou os trabalhadores rurais fora dos campos, nos mocambos e nos bairros miseráveis das cidades, criaram ao mesmo tempo as condições de uma terrível extensão da fome e tornaram instável e insegura a sua própria mão de obra. A partir daí, não podem nem mais prever de um dia para o outro o número exato de cortadores de cana que terão na plantação”[76].
É este salto do desenvolvimento capitalista no campo que leva, ao fim dos anos 1960, a uma aceleração da urbanização com a migração da população camponesa expropriada para as periferias das grandes cidades, já acentuada desde os anos 1950 pela pressão do monopólio da terra e a consequente pobreza rural. No entanto não se pode superestimar este êxodo rural e seus efeitos na formação social brasileira da segunda metade do século XX até o presente momento. Esta superestimação faz parte, e é importante dizê-lo, da propaganda do Estado burocrático brasileiro e sua defesa da hipótese de que o problema agrário foi “resolvido” e o país integralmente “modernizado”.
O caso do recenseamento da população agrária no Brasil é sintomático. Em seu recenseamento de 2010 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) declarava uma população rural brasileira total de 16%, com a difusão de uma suspeita generalizada entre os geógrafos brasileiros de que se tratavam de números subestimados. No ano de 2015, uma pesquisa dirigida pela professora Tânia Bacelar de Araújo e desenvolvida pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura, o Ministério do Planejamento e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social revelava um dado completamente distinto que demonstrava que a população rural brasileira correspondia, na verdade, a 36% da população total[77].
Do mesmo modo, o avanço do capitalismo agrário promovido desde o fim dos anos 1960 não suprimiu as formas semifeudais. É verdade que, por um lado, ele reduziu consideravelmente sua extensão, gerando uma massa de pobres no meio rural que forma um “exército agrário de reserva” através de sua expulsão direta das parcelas de terra concedidas pelos latifundiários. Estes os pobres do campo entram, assim, em um processo de proletarização, tendo sido separados do acesso direto aos meios de produção e se tornando força de trabalho disponível para os processos de trabalho capitalistas. Por outro lado, este processo de proletarização não deixa de se articular com relações de produção servis, mobilizadas em muitos casos no mesmo processo de trabalho, os produtores portanto ao mesmo tempo relações de produção capitalistas e relações de produção servis, formando uma massa semiproletária. Como relata Robert Linhart ainda em 1979
“Entre o verdadeiro proprietário, munido de um título, mas que só possui alguns hectares de terra pobre, o posseiro, sem título, sempre ameaçado de expulsão, o meeiro, o assalariado intermitente, o diarista, o permanente que conserva uma parcela de terra, a fronteira não é rígida. Se, teoricamente, antes de 1964, quando existia uma certa liberdade de organização, a liga camponesa agrupava os pequenos proprietários agrícolas para o aumento dos salários, os dois muitas vezes se misturavam, e a liga sempre reivindicada a mesma base de recrutamento que o sindicato, procurando quando possível aliar-se a ele. Hoje ainda, após quinze anos de repressão, depois dos desmantelamentos, das torturas, das execuções reencontro os vestígios deste entrelaçamento. Um munícipio do oeste [de Pernambuco]. O sindicato conta entre os seus membros pequenos proprietários. Cerca de 30% dos trabalhadores sindicalizados são pequenos proprietários ou posseiros. O próprio presidente do sindicato, lá posto como interventor pela ditadura de 1964, possui seis hectares”[78].
Nos últimos quarenta anos as alterações nestas formas produtivas foram quantitativas e não qualitativas. De 1980 a 2020 a parcela da força de trabalho nacional empregada em atividades agrícolas diminuiu substancialmente sem que isto não alterasse a contradição fundamental do processo.
Este processo de semiproletarização rural se consolida no período 1960-1980. A partir dos anos 1990, a formação social brasileira começa a se desenvolver nos quadros daquilo que já se identificou, a nosso ver corretamente, como uma “situação colonial de novo tipo”[79]. Com a decomposição e a derrota temporária do socialismo nos países asiáticos, especialmente na China, o bloco revisionista abre sua economia aos investimentos imperialistas, oferecendo a estes principalmente uma imensa massa de força de trabalho barata. Os capitais imperialistas migram massivamente da América Latina para a Ásia, levando ao conhecido processo acelerado de desindustrialização, do qual o caso brasileiro é o mais gritante.
No entanto, a dominação do imperialismo nas formações latinoamericanas não apenas se mantém como se aprofunda em certo sentido. Ela passa a se basear cada vez mais na subordinação da economia brasileira ao capital financeiro, por um lado, e em um desenvolvimento do capitalismo agrário baseado em um alto nível de desenvolvimento das forças produtivas. O caráter agroexportador da formação social brasileira, em sua integração subordinada ao mercado mundial, se aprofunda intensamente, levando a um novo ciclo econômico extrativista, em especial durante os anos dos governos oportunistas do Partido dos Trabalhadores (PT) – daí sua necessidade de difundir a ideologia de uma suposta “resolução da questão agrária” pela “modernização do campo”, mas também sua recuperação ideológica, em um nível profundamente inferior, de teses análogas às de Agrarismo e industrialismo. Com o êxodo da plataforma industrial do imperialismo, a função da formação social brasileira na divisão internacional do trabalho imposta pelo imperialismo volta a ser a de exportador de bens primários. No entanto, esta reprimarização se opera em uma base técnica capitalista, partindo do nível de forças produtivas superior desenvolvido a partir do fim dos anos 1960 e, agora, análogo ao nível de desenvolvimento técnico mais avançado do capitalismo agrário.
No entanto, este latifúndio de alta tecnologia não exclui as formas semifeudais. Pelo contrário, ele está baseado em formas híbridas de proletarização e servidão, em uma nova fase de um processo secular no desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Aqui
“o desenvolvimento do modo capitalista de produção se faz, principalmente, através da fusão em uma mesma pessoa do capitalista e do proprietário de terra. (...) Mas foi na segunda metade do século XX que esta fusão ampliou-se significativamente. Após a deposição, pelo golpe militar de 64, do governo de João Goulart, os militares procuraram ressoldar esta aliança política (...). Assim, a chamada modernização da agricultura não atuou no sentido de transformação dos latifundiários em empresários capitalistas, mas ao contrário, transformou os capitalistas industriais e urbanos, sobretudo do Centro-Sul do país, em proprietários de terra e latifundiários. (...) No Brasil esta aliança faz com que ao invés da burguesia atuar no sentido de remover o entrave (a irracionalidade) que a propriedade privada da terra [na forma do latifúndio] traz ao desenvolvimento do capitalismo, atua no sentido de solidificar ainda mais a propriedade privada da terra. (...) Dessa forma, a concentração da propriedade privada da terra no Brasil não pode ser compreendida como uma excrescência da lógica do desenvolvimento capitalista, ao contrário, ela é parte constitutiva do capitalismo que se desenvolveu no país. Um capitalismo que revela contraditoriamente sua face dupla: uma moderna no verso e outra atrasada no reverso. É por isso que se deve insistir na tese de que a concentração fundiária no Brasil tem características sem igual na história mundial, em nenhum momento da história da humanidade se encontrou propriedade privadas dom a extensão que se encontra no Brasil. A soma da área ocupada pelas 27 maiores propriedades privadas no país é igual à superfície total ocupada pelo estado de São Paulo, ou então, a soma da área ocupada pelas 300 maiores propriedades privadas no país é igual a duas vezes a superfície total desse mesmo estado”[80].
Estes latifúndios capitalistas deram lugar ao desenvolvimento de uma série de novas formas híbridas que entram nos limites da semifeudalidade. Se a extensão quantitativa destas formas híbridas na organização dos processos de trabalho no interior da formação social brasileira pôde ser reduzida com o avanço da mecanização intensiva na produção agrária, pensamos ser correto afirmar, por outro lado, que a função estrutural central destas formas híbridas não se alterou. Ainda assim, elas ocupam uma parcela significativa da força de trabalho brasileira que pensamos ser possível quantificar – parcialmente e apenas parcialmente, em função das mesmas dificuldades apontadas por Lênin anteriormente, mas sobretudo pela política do Estado burocrático brasileiro de cobrir a questão agrária como uma cortina de fumaça, como visto na questão da ruralidade da população nacional.
Segundo o Censo Agropecuário 2017, entre os anos de 2016 e 2017 o pessoal total ocupado nos estabelecimentos agropecuários brasileiros foi de 17.549.433 pessoas. Destas, 11.607.168 tinham parentesco direto com o produtor proprietário do estabelecimento, compondo a área da “agricultura familiar”. Os outros 5.942.275 sendo pessoal contratado para trabalho no estabelecimento agropecuário, sem vínculo familiar com o produtor. Entre a força de trabalho contratada com a intermediação de terceiros – empreiteiros, cooperativas de mão de obra e outras empresas – houve um aumento de 143% em relação ao censo anterior, em 2006, de 251.652 pessoas para 611.624[81]. É importante apontar, no entanto, que mesmo estes dados parecem envolver uma subestimação relativamente grande da força de trabalho agrária, muito especialmente no que diz respeito ao registro dos estabelecimentos agropecuários em situação de posse e do pessoal ocupado nestes. Enquanto o Censo Agropecuário 2017, por exemplo, declara uma soma total dos estabelecimentos em situação de titulação provisória e por ocupação de 731.163 estabelecimentos[82], enquanto o INCRA estimava em 2020 estas “posses precárias” em 1,2 milhões de estabelecimentos[83], o que – assumindo que o caráter principal das pequenas posses agrárias é o da produção na forma da “agricultura familiar”[84] e a média de pessoas empregadas por estabelecimento declarada no Censo Agropecuário 2017 – pode significar algo em torno de 1,5 milhões de camponeses a mais nestes números, sem considerar, obviamente, subnotificações ainda maiores. Seguiremos em nossas hipóteses com os dados do Censo Agropecuário 2017, apesar disto, mas sempre tendo em mente esta margem de subnotificação.
Pensamos poder afirmar inicialmente, seguindo as caracterizações das formas de renda pré-capitalistas no capitalismo apresentadas por Ariovaldo de Oliveira, que este pessoal 11,6 milhões forma a base da produção camponesa híbrida no Brasil. No registro dos processos de trabalho híbrido se somam a estes uma estimativa de 369 mil trabalhadores obrigados pelas formas do “trabalho escravo moderno”[85]. Em sua imensa maioria estas formas dificilmente podem ser enquadradas diretamente nas formas da escravidão, com a apropriação direta do corpo do produtor, envolvendo especialmente a articulação de formas de trabalho forçado e servidão por dívida com processos de proletarização. Em seu conjunto, estas formas marcam uma forma de mobilização sazonal e altamente dinâmica da força de trabalho pelos latifúndios capitalistas. Nestas formas,
“Para grande parte do ‘agronegócio’ a força de trabalho é recrutada a partir do sistema chamado pelos trabalhadores de ‘gato’, que os alicia, quando não a família inteira, nos interiores do Nordeste e Norte principalmente. Esses trabalhadores, com a promessa de emprego no Sudeste, viajam já devendo a passagem e, ao chegar, recebem adiantado a cesta básica do mês e o aluguel de alojamento. Assim, reproduz-se o velho sistema do ‘barracão’”[86].
Assim, considerando o último dado consolidado disponível para a população economicamente ativa, de 2015, a força de trabalho brasileira pode ser estabelecida como sendo de em torno de 105 milhões de produtores[87]. Em comparação com estes números, a parcela da força de trabalho submetida a formas semifeudais ocuparia o equivalente a 11,4% da força de trabalho total. Estes números, no entanto, estabelecem apenas o limite mínimo da força de trabalho empregada em formas semifeudais e certamente são maiores, sem que se possa precisar exatamente o quanto. E isto, sobretudo, por três razões.
Em primeiro lugar porque mesmo entre os 5.942.275 que constituem o pessoal assalariado rural sem ligação com a agricultura familiar a proletarização e o assalariamento não apenas não excluem a fusão com formas de servidão, como o fazem muito frequentemente nos processos de trabalho agrários na formação social brasileira, sem que possamos quantificar de maneira precisa a margem dos assalariados rurais que produzem sob esta forma híbrida. O trabalho assalariado não apenas pode ser trabalho acessório para os camponeses que operam na forma da agricultura familiar, como a concessão sazonal do acesso à terra é comumente parte do pagamento pelas tarefas e empreitadas exercidas pelo assalariado agrário, estabelecendo o contínuo de processos de trabalho a que se referia Robert Linhart.
Em segundo lugar, porque o Censo Agropecuário não registra as formas híbridas irregulares empregadas frequentemente na produção agrária e que não caem sob formas como a servidão por dívida, como aquelas nas quais os trabalhadores são empregados sazonalmente como agregados ou parceiros não-assalariados pelo latifúndio capitalista, que lhes concede o direito ao uso da terra em troca de sua força de trabalho. Sabemos que estas formas são também muito comuns na formação social brasileira até os dias de hoje[88]. A população de pobres do campo a que chamamos de “exército agrário de reserva”, que constitui uma parcela considerável dos 36% da população brasileira que vive em zonas rurais, constitui uma reserva de força de trabalho disponível para o emprego nestas formas sazonais de servidão moderna que se reproduzem continuamente.
Em terceiro lugar, porque a reprodução da força de trabalho nas formações sociais coloniais e semicoloniais assume um aspecto específico, uma vez que, como vimos, esta força de trabalho é remunerada em nível inferior ao necessário para sua reprodução. Vimos também o papel que a reprodução de formas semifeudais na produção agrária tem nessa reprodução. Ora, estas não são as únicas formas semifeudais em questão. Seria preciso acrescentar a essa força de trabalho semifeudal a esfera do trabalho doméstico, na medida em que é organizado em formas não-assalariadas ou que combinam assalariamento e servidão, tarefa que não podemos realizar nos limites deste estudo.
Em um nível superficial as formas semifeudais reduziram sua extensão na formação social brasileira desde as transformações dos anos 1960. No entanto, analisar as coisas apenas deste ponto de vista seria ceder ao empirismo e deixar de colocar a questão sobre a função que assumem na formação social brasileira. Vimos que estas formas híbridas são continuamente reproduzidas e que cumprem funções essenciais, que modificam toda a estruturação desta formação social.
Do mesmo modo, na formação social estadunidense do fim do século XIX a população de produtores escravizados girava em torno de 12,5% da população total – constituindo, portanto, uma parcela ainda menor da força de trabalho, uma vez que nesta população estão contabilizados os indivíduos escravizados, mas indisponíveis para os processos de trabalho (crianças pequenas, idosos, etc.). E, no entanto, Marx aponta o problema da escravidão como a principal contradição de classe neste país, aquela cuja resolução seria o ponto de explosão para o início da resolução de todas as outras. Marx chega afirmar que nos Estados Unidos da América do Norte “todo o movimento operário independente ficou paralisado durante o tempo em que a escravidão desfigurou uma parte da república. (...) Mas da morte da escravidão brotou imediatamente uma vida nova e rejuvenescida”[89]. Se Marx pôde fazê-lo foi justamente por compreender a função estrutural da escravidão na formação social estadunidense, por não se reduzir a uma análise do tipo quantitativo-empirista. Com efeito, era toda uma parte da república que dependia desta forma de produção não-capitalista, e a sua existência gerava efeitos globais, paralisando “todo o movimento operário independente”.
A situação semifeudal têm o mesmo efeito no interior das formações sociais coloniais e semicoloniais. Ainda que o desenvolvimento capitalista possa restringir sua área, elas continuam a ter funções estruturais impostas pela reprodução do imperialismo. Nestas formações, o povo não sente apena o peso da exploração do modo de produção capitalista, mas também o peso da servidão reproduzida pelo capitalismo, em uma articulação de temporalidades diversas que é impensável no interior das ideologias burguesas da história e do progresso. Este passado que o presente reproduz incessantemente, este impressionante reforço de arcaísmo moderno, é isso que a categoria de formação híbrida nos permite compreender de maneira mais consistente. Esta situação é aquela que paralisa todo o movimento operário independente nos países coloniais e semicoloniais, e impõe a ele a tarefa de dirigir uma nova aliança, uma aliança de novo tipo entre as classes exploradas e oprimidas pelo imperialismo. O resultado político desta nova aliança dirigida pelo proletariado não pode ser outro que não a luta pela formação de uma nova democracia que passe de maneira ininterrupta ao socialismo, como única forma de superação da exploração capitalista.
Vimos de que maneira a categoria de formação híbrida nos ajuda a compreender os desenvolvimentos da formação social brasileira do fim do século XIX ao momento atual, em sua associação ao desenvolvimento do capitalismo imperialista e burocrático. Afirmamos, assim, a tese de que a formação social brasileira desde o período de 1930 até sua fase atual pode ser definida como uma formação social capitalista semifeudal e semicolonial.
Sobre as formações híbridas - Introdução
Sobre as formações híbridas - Parte 2: O modo de produção feudal
[1] Ver LÊNIN, V.I. “O imperialismo, fase superior do capitalismo” in Obras escolhidas, vol. 1, p. 641.
[2] LÊNIN, V.I. “O imperialismo, fase superior do capitalismo” in Obras escolhidas, vol. 1, p. 621.
[3] LÊNIN, V.I. “O imperialismo, fase superior do capitalismo” in Obras escolhidas, vol. 1, p. 622.
[4] LÊNIN, V.I. “O imperialismo, fase superior do capitalismo” in Obras escolhidas, vol. 1, p. 637.
[5] Para todos estes pontos, ver AMIN, Samir. Le développement inégal, p. 165. Evidentemente, o capital sempre pressiona a remuneração da força de trabalho aos mais baixos níveis possíveis. No entanto, na produção de bens de capital tal como ocorre nos países imperialistas o nível dos salários tende a integrar os custos da reprodução da força de trabalho.
[6] LÊNIN, V.I. “O imperialismo, fase superior do capitalismo” in Obras escolhidas, vol. 1, p. 584.
[7] Como aponta Samir Amin, “O subdesenvolvimento se manifesta não pelo nível do produto per capita, mas por características estruturais próprias que obrigam que não se confundam os países subdesenvolvidos com os países desenvolvidos em uma etapa anterior de seu desenvolvimento. Estas características são: 1º as desigualdades extremas que caracterizam a distribuição das produtividades na periferia quanto ao sistema de preços transmitido do centro, desigualdade que decorrerão da natureza própria das formações periféricas e dominam em grande parte a sua estrutura de distribuição de renda; 2 a desarticulação que resulta, na periferia, do ajusta da orientação da produção conforme as necessidades do centro e que impede a transmissão dos benefícios do progresso econômico; 3º a dominação econômica do centro, que se exprime nas formas de especialização internacional (as estruturas do comércio mundial nas quais o centro molda a periferia segundo suas necessidades) e na dependência das estruturas de financiamento do crescimento na periferia (a dinâmica do capital estrangeiro. (...) A acentuação das características do subdesenvolvimento ao longo do crescimento econômico da periferia resulta necessariamente no bloqueio do crescimento, ou seja, na impossibilidade, qualquer que seja o nível per capita atingido, de passar a um crescimento autocentrado e autodinâmico”. AMIN, Samir. Le développement inégal, p. 174.
[8] AMIN, Samir. Le développement inégal, p. 258. É curioso, no entanto, que Samir Amin indique esta heterogeneidade das formações sociais coloniais e semicoloniais apenas para, páginas mais tarde, reivindicar a hipótese de uma América Latina “capitalista”, envolvendo apenas formas “pseudo-feudais” e “pseudo-escravistas”. Pensamos que a análise de Samir Amin quanto à América Latina, profundamente marcada pela “teoria da dependência”, é fundamentalmente equivocada.
[9] TSÉTUNG, Mao. “Análise de classes na sociedade chinesa” in Obras escolhidas, vol. 1, p. 2 e TSÉTUNG, Mao. “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China” in Obras escolhidas, vol. 2, p. 518.
[10] Para este ponto e o processo histórico da “compradorização” recente no Brasil, ver De produtores a “compradores” em https://anovademocracia.com.br/no-43/1696-de-produtores-a-qcompradoresq. Consultado em 29/04/2021.
[11] Daí seu duplo interesse: por um lado, ela tende a se opor aos monopólios e ao imperialismo, mas, por outro, ela se opõe igualmente ao proletariado e sua linha revolucionária. Assim, “em certa medida e em certos momentos, ela [pode] participar na revolução contra o imperialismo e o governo dos burocratas e caudilhos militares, [pode] atuar como uma força revolucionária”, enquanto em outros momentos ela pode “seguir a grande burguesia compradora e atuar como cúmplice desta na contrarrevolução”. TSÉTUNG, Mao. “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China” in Obras escolhidas, vol. 2, p. 520. O problema da mobilização política da burguesia nacional nunca pode ser colocado como um problema de aliança de classes, tal como coloca o revisionismo, mas de sua direção proletária. O papel que a burguesia nacional pode desenvolver nos processos revolucionários depende sempre da capacidade de direção do proletariado e de seu Partido e do manejo que fazem das contradições. A burguesia nacional, em todo caso, não pode ser tomada como uma das forças motrizes da revolução, isto é, como uma das forças sociais nas quais o processo revolucionário deve se apoiar. Se a burguesia nacional pode atuar em certos momentos como uma força revolucionária, é sempre em função da direção proletária. Fato é que a generalização dos monopólios a partir dos anos 1970 enfraqueceu globalmente as burguesias nacionais nos países coloniais, absorvendo-as às cadeias produtivas do imperialismo, reduzindo a importância do problema da mobilização da burguesia nacional nos processos de libertação nacional.
[12] Ver, por exemplo, TSÉTUNG, Mao. “Sobre a questão da burguesia nacional e dos nobres esclarecidos” in Obras escolhidas, vol. 4¸p. 307-312, “Levar a revolução até o fim” in Obras escolhidas, vol. 4¸p. 466 e “Da justa solução das contradições no seio do povo” in Obras escolhidas, vol. 5, p. 460-463.
[13] É importante apontar, no entanto, que em certos casos específico a burguesia burocrática pode subordinar a si o movimento camponês e operário e romper parcialmente com a burguesia compradora e o imperialismo, abrindo uma nova etapa de desenvolvimento da formação social que domina. Nestes casos, “ou bem o Estado cumpre suas funções no quadro do sistema, ou seja, auxiliar o desenvolvimento de uma burguesia local periférica; ou bem ele pretende liberar a nação da dominação do centro pela promoção da indústria nacional, que, então, só pode ser pública, e então ele se arrisca a entrar em conflito com as formações sociais de onde ele procede. As tendências ao desenvolvimento do capitalismo de Estado comuns ao conjunto do terceiro mundo encontram, então, a sua origem no lugar dominante ocupado pelo capital estrangeiro e na fraqueza da burguesia nacional urbana que é sua contraparte. Frequentemente, particularmente na África, este movimento nacional foi dirigido pela pequena-burguesia urbana de funcionários e empregados e pela burguesia de pequenos empreendedores e agricultores onde ela existia. As elites agrárias tradicionais geralmente se alinharam do lado da ordem colonial, que elas acreditavam garantir a ordem da tradição, ameaçada nas cidades pela modernização cultural. As burguesias urbanas foram, então, gestadas pelo movimento nacionalista pequeno-burguês. A independência reforçou brutalmente o peso específico da nova burocracia de Estado na sociedade nacional, tanto mais quanto a burguesia rural, lá onde ela existia, permanecia dispersa e conservava horizontes limitados. A burocracia herda o prestígio do Estado, prestígio tradicional nas sociedades não europeias, reforçado pela experiência do poder, aparentemente absoluto, que ela exercia na administração colonial e pelo fato de que a pequena burguesia de onde ela se originou tinha o monopólio da educação e das técnicas modernas. (...) O desenvolvimento do capitalismo na situação colonial se fundava sobre a transformação da agricultura de subsistência em agricultura de exportação e sobre a produção de minérios. (...) Em certos casos em que o capital estrangeiro não esgotou as possibilidades deste tipo de desenvolvimento quando acontece a independência, a nova administração local deixa subsistir as estruturas econômicas herdadas da colonização. Mas em outros casos, a nova administração é levada a cobiçar o setor estrangeiro; para ela, é o meio de ampliar rapidamente suas possibilidades de extensão, se dando uma base econômica. Ela tende, então, a se transformar de burocracia administrativa clássica em burguesia de Estado. (...) É este deslocamento no sentido do capitalismo de Estado que constitui a essência dos ‘socialismos terceiro-mundistas’”. AMIN, Samir. Le développement inégal, p. 303-304. Esta tendência geral nos movimentos de independência de muitos países africanos pôde igualmente se exprimir sob a forma ideológica do revisionismo, como no caso de Angola, tendo combatido duramente as alas revolucionárias dos movimentos de libertação nacionais. Com outras particularidades, esta mesma análise nos oferece perspectivas importantes para analisar o desenvolvimento de formas de capitalismo de Estado que operam superficialmente com a ideologia eclética de um “socialismo” vago, como no atual caso venezuelano.
[14] BORJA, Luis Arce (ed.). Guerra Popular en el Peru – El pensamiento Gonzalo, p. 398.
[15] LÊNIN, V. I. El desarollo del capitalismo en Rusia¸p. 12-13. Os junkers eram a aristocracia fundiária alemã que, ao fim do século XIX, investiram na modernização das técnicas de produção agrária em suas terras sem abolir as formas de exploração servil que mobilizavam.
[16] Para este ponto ver AMIN, Samir & VERGOPOULOS, Kostas. A questão agrária e o capitalismo, pp. 30-32, 36-38. É importante notar, no entanto, que nestas formulações Samir Amin esbarra em seu maior erro teórico: a afirmação de um “modo de produção mercantil simples”, segundo a qual pequena propriedade é um modo de produção estruturado e consistente por si mesmo. Faremos adiante a crítica desta tese equivocada, que tem consequências práticas graves. Pensamos que a simpatia de Samir Amin pelo revisionismo chinês e seu abandono do maoismo no decorrer dos anos 1980 não é sem relações com esta tese teórica.
[17] Ver REY, Pierre-Philippe. As alianças de classes, p. 167-169.
[18] LÊNIN, V. I. El desarollo del capitalismo en Rusia¸ p. 173-174.
[19] LÊNIN, V. I. El desarollo del capitalismo en Rusia¸ p. 175.
[20] LÊNIN, V. I. El desarollo del capitalismo en Rusia¸ p. 177.
[21] LÊNIN, V. I. El desarollo del capitalismo en Rusia¸ p. 178. O grifo é nosso.
[22] LÊNIN, V. I. El desarollo del capitalismo en Rusia¸ p. 180.
[23] LÊNIN, V. I. El desarollo del capitalismo en Rusia¸ p. 186.
[24] Ver HAROOTUNIAN, Harry. Marx after Marx, p. 167-170.
[25] TSÉTUNG, Mao. “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China” in Obras escolhidas, vol. 2, p. 500-506.
[26] Esta contradição “decorre do fato de que a produção do capital nunca é, ou seja, nunca decorre de relações especificamente capitalistas de produção, fundadas, pois, no trabalho assalariado e no capital. Para que a relação capitalista ocorra é necessário que seus dois elementos centrais estejam constituídos, o capital produzido e os trabalhadores despojados dos meios de produção. Isto é, a produção do capital não pode ser entendida nos limites das relações especificamente capitalistas, pois estas são na essência o processo de reprodução ampliada do capital. É uma espécie de acumulação primitiva permanente do capital necessária ao seu desenvolvimento”. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária¸ p. 11. Ariovaldo de Oliveira, no entanto, recusa a tese da semifeudalidade. Mas uma análise mais rigorosa de seu texto demonstra que Oliveira apenas recusa uma determinada forma de apresentação desta tese, aquela que entende a semifeudalidade como fundamentalmente ligada ao “atraso” e excluindo as relações de produção capitalistas, devendo estas ser transformadas no sentido de um desenvolvimento capitalista para desbloquear o desenvolvimento das forças produtivas no meio rural. Em seu ponto central, o argumento de Oliveira sobre a reprodução de relações de produção não-capitalistas no campo é fundamentalmente convergente com uma compreensão correta do problema da semifeudalidade. Resta afirmar, além disso, que o trabalho de Oliveira é essencial, e seguimos as linhas gerais de sua análise nas páginas seguintes.
[27] OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária¸ p. 32.
[28] MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano, p. 145.
[29] Como afirma perfeitamente Marilsa de Souza, “É importante compreender que a definição (...) de semifeudalidade, não significa falar de feudalismo, nem de modo de produção feudal, e sim de capitalismo burocrático, [isto é, da forma específica de capitalismo desenvolvida pelo imperialismo nos países coloniais e semicoloniais] que é uma parte nova dentro do processo histórico, e isto não se confunde com produção feudal”. SOUZA, Marilsa Miranda de. Imperialismo e educação no campo, p. 64.
[30] ALTHUSSER, Louis. Écrits sur l’histoire, p. 145. Ver igualmente MARIÁTEGUI, José Carlos. Por um socialismo indo-americano, p. 145.
[31] OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária¸ p. 39. O grifo é nosso.
[32] Oliveira segue retomando uma apresentação dos elementos estruturais da produção camponesa, em sua junção de processos capitalistas e não-capitalistas: “a) – a força de trabalho familiar - é o motor do processo de trabalho na unidade camponesa; a família camponesa é um verdadeiro trabalhador coletivo; b) – a ajuda mútua entre os camponeses – é a prática que eles empregam para suprir em determinados momentos a força de trabalho familiar; entre essas práticas está o mutirão ou a troca pura e simples de dias de trabalho entre eles; esse processo aparece em função de os camponeses não disporem de rendimentos monetários necessários para pagar trabalhadores assalariados; c) – a parceria – é outro elemento da produção camponesa decorrente da ausência de condições financeiras do camponês para assalariar trabalhadores em sua propriedade; assim ele, ao contratar um parceiro, divide com ele custos e ganhos; é comum essa relação de trabalho aparecer articulada na produção capitalista como estratégia do capital para reduzir os custos de remuneração dos trabalhadores; da mesma maneira, a parceria pode ser a estratégia que os pequenos camponeses utilizam para ampliar a sua área de cultivo e consequentemente aumentar suas rendas; d) – o trabalho acessório – é o meio através do qual o camponês transforma-se, periodicamente, em trabalhador assalariado, recebendo, via de regra, por período de trabalho; essa transformação periódica constitui uma fonte de renda monetária suplementar na unidade camponesa; e) – a jornada de trabalho assalariada – aparece na unidade de produção camponesa como complemento da força de trabalho familiar em momentos críticos do ciclo agrícola, nos quais as tarefas exigem rapidez e muitos braços; essa força de trabalho assalariada na unidade camponesa pode, em determinados momentos, começar a ser permanente, e o camponês passa, então, a combinar as duas forças de trabalho, a familiar e a assalariada; f) – a socialização do camponês – é importante elemento da produção camponesa, pois é através dela que as crianças são iniciadas, desde pequenas, como personagens da divisão social do trabalho no interior da unidade produtiva; quando a criança camponesa é pequena, brinca com miniaturas dos instrumentos de trabalho; quando a criança é crescida, já trabalha com esses instrumentos; g) – a propriedade da terra – é, na unidade camponesa, propriedade familiar, privada para muitos, porém diversa da propriedade privada capitalista (a que serve para explorar o trabalho alheio); na propriedade familiar se está diante da propriedade direta de instrumentos de trabalho que pertencem ao próprio trabalhador, é terra de trabalho, é propriedade do trabalhador,não é, portanto, instrumento de exploração; nesse particular, três situações podem-se colocar para o camponês: ele pode ser camponês-proprietário¸ ser camponês-rendeiro (pagar renda para poder ter acesso à terra) ou ser camponês-posseiro (recusar-se a pagar a renda e apossar-se da terra); h) – a propriedade dos meios de produção – exceto a terra, na maioria dos casos os meios de produção são em parte adquiridos, portanto mercadorias e, em parte, produzidos pelos próprios camponeses; como consumidor de mercadorias (instrumentos de trabalho, por exemplo) o camponês se vê subordinado ao capital, que lhe vende produtos caros e lhe paga baixo preço pelos produtos agrícolas; i) – a jornada de trabalho – é outro elemento da produção camponesa a ser distinguido, pois nesse caso não há rigidez de horário diário, como na produção capitalista: a jornada de trabalho do camponês varia conforme a época do ano e segundo os produtos cultivados; assim, combinam-se períodos de pouco trabalho (muito tempo livre, quando então o camponês pode desempenhar um trabalho acessório ou produzir instrumentos de trabalho) e períodos de trabalho intenso (quando muitas vezes nem mesmo o nascer e o pôr-do-sol são limites naturais da jornada de trabalho)”. OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária¸ p. 40-42.
[33] MARX, Karl. O capital – livro III, p. 844-845. Em todas estas passagens, Marx se refere a formas semifeudais de transição entre o modo de produção feudal e o modo de produção capitalista, que estão no quadro geral da subsunção formal. No entanto, veremos adiante como estas formas são reproduzidas concretamente no período atual, sempre em formas modificadas por sua articulação com o capitalismo.
[34] Par todos estes pontos sobre a renda fundiária, ver OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária¸ p. 44-55.
[35] MARX, Karl. O capital – livro III, p. 850.
[36] MARX, Karl. O capital – livro III, p. 852-853.
[37] OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária¸ p. 59.
[38] MARX, Karl. O capital – livro III, p. 855.
[39] MARX, Karl. O capital – livro III, p. 857.
[40] OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária¸ p. 62. Nesta mesma passagem, Oliveira afirma ser um equívoco a associação de etapas de desenvolvimento anteriores da formação social brasileira ao feudalismo. Naturalmente, discordamos desta afirmação, já tendo justificado a identificação do modo de produção feudal no período colonial.
[41] ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring, p. 305.
[42] Ver CERM. Sobre o feudalismo, pp. 21 e 32.
[43] MARX, Karl. O capital – livro III, p. 859.
[44] ALTHUSSER, Louis. Écrits sur l’histoire. P. 175-176.
[45] LACLAU, Ernesto. “Feudalismo y capitalismo en América Latina” in Modos de producción en América Latina, p. 36.
[46] ROUQUIÉ, Alain. América Latina – Introducción al extremo occidente, p. 91-92.
[47] Para a análise do semiproletariado e de suas diversas formas na China, ver TSÉTUNG, Mao. “Análise de classes na sociedade chinesa” in Obras escolhidas, vol. 1, p. 7-10.
[48] AMIN, Samir. Le developpementinégal, p. 292-293.
[49] ROUQUIÉ, Alain. América Latina – Introducción al extremo occidente, p. 103.
[50] SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, pp. 36 e 88.
[51] Para se ter uma ideia: “Na primeira metade do século, o Brasil só tivera saldo comercial com o exterior umas poucas vezes e o déficit era coberto com empréstimos; nela, o saldo orçamentário só ocorreu também sete vezes, até 1860. O Brasil contratou no exterior mais de dez empréstimos, no valor de 11,5 milhões de libras esterlinas. A partir de 1861, os saldos na balança comercial exterior foram contínuos e, embora oscilasse em valor, alcançaram altos índices em anos como 1867-1868 e 1871-1872. Daí por diante foram quase sempre crescentes. O déficit orçamentário, porém, permaneceu constante em toda a segunda metade do século”. SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, p. 94.
[52] Não poderemos nos deter em uma análise detalhada do desenvolvimento do capitalismo burocrático no Brasil. Mas este desenvolvimento já teve sua história registrada e sistematizada em uma obra absolutamente fundamental. Ver SODRÉ, Nelson Werneck. Brasil – Radiografia de um modelo.
[53] SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, p. 102-103.
[54] SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, p. 163.
[55] GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 95-101. Guimarães aponta, corretamente, que não se pode confundir este sistema de “parceria” com a parceria agrária capitalista tal como Marx a apresenta em O capital.
[56] Ver GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 146-147.
[57] GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 175.
[58] GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 177.
[59] ANDRADE, Manoel Correia de. A terra e o homem no nordeste, p. 108-109, cit. em GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 181.
[60] “No Brasil, convencionou-se enquadrar na categoria de minifúndios os estabelecimentos agropecuários de dimensões inferiores a 5 hectares. Esse grupo de estabelecimentos representava, em 1940 e também em 1950, segundo os respectivos censos, cerca de 22% do total de estabelecimentos existentes no país, correspondendo em números absolutos, naquelas datas, a 414.468 e 458.876 unidades, respectivamente. Em 1960, porém, seu número havia aumentado para 1.033.856 e sua proporção para 31%”. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 186.
[61] GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 194.
[62] Ver http://www2.fct.unesp.br/nera/atlas/caracteristicas_socioeconomicas_b.htm#populacao. Consultado em 11/05/2021.
[63] BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e industrialismo,p. 40-43.
[64] BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e industrialismo,p. 47.
[65] BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e industrialismo,p. 138.
[66] BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e industrialismo,p. 145-146.
[67] BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e industrialismo,p. 149.
[68] BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e industrialismo,p. 156-160.
[69] BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e industrialismo,p. 192.
[70] LACLAU, Ernesto. “Feudalismo y capitalismo en América Latina” in Modos de producción en América Latina, p. 37.
[71] PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira, p. 38.
[72] PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira, p. 41.
[73] PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira, p. 46-47.
[74] PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira, p. 61-62.
[75] PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira, p. 263-264.
[76] LIHART, Robert. O açúcar e a fome – Pesquisa nas regiões açucareiras do nordeste brasileiro, p. 28. Nas páginas seguintes, Linhart relata o caso de um camponês, cujo filho acabara de morrer, segundo o qual “antigamente ele tinha um roçado pequeno, de uma ou duas quadras, entre vinte e quarenta metros de lado e ele até podia vender o excedente quando dava para isso”. Segundo o presidente de um sindicato rural da mesma região, com o avanço da cana todas as outras culturas desapareceram da regiam. Ver LIHART, Robert. O açúcar e a fome – Pesquisa nas regiões açucareiras do nordeste brasileiro, p. 35. O tema do avanço capitalista sobre o sistema de roçados percorre todo o livro de Linhart.
[77] Ver https://deolhonosruralistas.com.br/2019/05/09/armas-liberadas-residente-em-area-rural-compoe-16-da-populacao-brasileira/. Consultado em 13/05/2021. Depois disso, o IBGE voltou atrás no ano de 2017, retificando seus dados diante do escândalo para apresentar uma população rural de 24%, provavelmente muito aquém da realidade. Cabe notar que mesmo depois desta retificação, o IBGE segue divulgando a estatística segundo a qual a população rural é de 16%. Ver https://exame.com/brasil/ibge-aponta-que-brasil-e-mais-rural-que-imaginado/. Consultado em 13/05/2021.
[78] LIHART, Robert. O açúcar e a fome – Pesquisa nas regiões açucareiras do nordeste brasileiro, p. 53-54.
[79] Ver https://cemflores.org/2006/02/16/formacao-economico-social-brasileira-regressao-a-uma-situacao-colonial-de-novo-tipo/.
[80] OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo capitalista de produção, agricultura e reforma agrária, p. 132.
[81] IBGE. Censo Agropecuário 2017, p. 71-72.
[82] IBGE. Censo Agropecuário 2017, p. 67.
[83] Ver https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-12/governo-edita-mp-para-regularizar-600-mil-posses-rurais-ate-2022. Consultado em 15/05/2021.
[84] Ver http://www2.fct.unesp.br/nera/atlas/estrutura_fundiaria.htm#posses_grilos. Consultado em 15/05/2021.
[85] Ver https://www.brasildefato.com.br/2018/08/05/combate-ao-trabalho-escravo-sofre-corte-orcamentario-no-brasil-369-mil-sao-afetados. Consultado em 15/05/2021.
[86] Para este problema e uma análise destas formas de servidão por dívida e trabalho forçado nos latifúndios capitalistas, ver especialmente https://www.anovademocracia.com.br/no-233/13664-latifundio-e-servidao-irmaos-siameses. Consultado em 15/05/2021. No sistema do “barracão” os produtores são remunerados com créditos que só podem ser usados em um “barracão” de propriedade do empregador, via de regra insuficientes para sua reprodução, gerando assim uma dívida indefinida.
[87] Ver https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=7&op=0&vcodigo=PD292&t=grupos-idade. Consultado em 15/05/2021.
[88] Como afirma em entrevista ao Brasil de Fato o escritor Itamar Vieira Júnior, “Muitas vezes eu presenciei essa história. (...) Encontrei muitos trabalhadores vivendo em condição de servidão, vivendo como agregados em fazendas, sem direito à terra, com direito à moradia precária, porque não é possível construir casas de alvenaria, porque elas demarcam o tempo da pessoa com a terra, e as casas de barro, de pau a pique, podem ser desfeitas facilmente e não deixam resquícios da presença daquelas pessoas ali”. Ver https://www.brasildefato.com.br/2021/02/10/itamar-vieira-jr-o-brasil-esta-encalhado-no-passado-que-resiste-em-ser-superado. Consultado em 15/05/2021.
[89] MARX, Karl. O capital, p. 257.
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