Sobre as formações híbridas - Introdução

                                                    "Vigorosamente apoiar a luta anti-imperialista dos povos da Ásia, África e América Latina", 1964
 

 

 

Introdução

 

A história das ciências e suas relações com a história da produção social levantam uma série de problemas complexos. No entanto, podemos afirmar sem dúvidas que cada fase do processo de produção social estabelece as condições para o desenvolvimento das ciências ao mesmo tempo em que impõe limites a este mesmo desenvolvimento. Por um lado, o desenvolvimento das forças produtivas implica um desenvolvimento real do conhecimento científico, mas, por outro, cada forma de organização da produção implica também um bloqueio ideológico específico para o desenvolvimento das ciências.

Por exemplo: como veremos, as formações sociais feudais, em que a terra assume a função de principal meio de produção e a coerção extraeconômica do produto do trabalho se impõe como forma essencial de exploração, fazem da política a instância dominante na vida social. Ora, esta dominação da instância política implica determinadas condições objetivas para o desenvolvimento das superestruturas ideológicas destas formações sociais. Admitindo uma grande variedade em seus conteúdos particulares, as ideologias feudais deverão apresentar certas tendências estruturais comuns, impostas pela forma de organização da produção social a que correspondem. Não é arbitrário, portanto, que as ideologias feudais em geral tendam a apresentar as classes que detém o poder de Estado como também detentoras legítimas de poderes e direitos sobrenaturais sobre a terra e seus produtos. Ao mesmo tempo, as formações sociais feudais levam à ampliação do excedente dos produtos da terra em relação às formas de produção anteriores, ampliam a circulação comercial a longa distância, tornam a divisão social do trabalho mais complexa, exigindo, portanto técnicas mais complexas, e criam, assim, as condições para o surgimento das ciências da natureza. Não é por acaso que encontramos as primeiras elaborações do método experimental em física já no mundo muçulmano no século XI, para depois serem redescobertas e desenvolvidas de maneira independente por Galileu no século XVII. Assim, a relação das formações sociais feudais com o desenvolvimento das ciências da natureza será profundamente contraditória: ao mesmo tempo em que o desenvolvimento das forças produtivas implica uma tendência geral ao desenvolvimento científico, as relações de produção das sociedades de classes bloqueiam este mesmo desenvolvimento.

Quanto a isto o caso do capitalismo não é diferente, embora o domínio das ciências que tenda a bloquear seja distinto: ao mesmo tempo em que cria as condições objetivas para o desenvolvimento das ciências sociais, o capitalismo levanta uma série de bloqueios ideológicos ao seu desenvolvimento. Ao fazer da economia a instância dominante nas formações sociais em que é dominante, o capitalismo cria as condições para o desenvolvimento de uma compreensão científica das bases materiais da produção material. Mas, ao mesmo tempo, o mesmo capitalismo gera as tendências estruturais que levantam bloqueios ideológicos para o conhecimento científico do desenvolvimento da economia, das sociedades e da história. O culturalismo, o historicismo ou o economicismo[1] têm, nas formações sociais modernas, a mesma função que as superstições religiosas tinham nas formações sociais feudais: estas formações ideológicas não apenas estabelecem as condições subjetivas para a reprodução de uma forma de produção específica, mas, ao fazê-lo, bloqueiam o desenvolvimento do conhecimento científico da realidade[2].

Ora, se as ideologias “científicas” que bloqueiam a ciência social nas formações sociais modernas podem limitar ou retardar o conhecimento do desenvolvimento capitalista, elas o fazem com ainda mais força no caso das formas especialmente complexas deste desenvolvimento que encontramos nas formações sociais do capitalismo periférico. O fazem, sobretudo, em razão da própria complexidade destas formações sociais. O conhecimento científico destas formações sociais encontrou, no entanto, condições objetivas para sua elaboração com as grandes descobertas teóricas do marxismo, do leninismo e do maoismo – e muito especialmente deste último. É com a prática da transformação das formações sociais que as hipóteses elaboradas com a análise dos fenômenos sociais podem ou não ser verificada. E, de fato, os conhecimentos produzidos pela Revolução Chinesa abriram um novo terreno para o desenvolvimento teórico da ciência social, e isso mesmo que estas descobertas só tenham sido compreendidas de maneira parcial e incompleta em muitos casos[3]. É sobre este terreno teórico que nos posicionamos, e nos parece que, efetivamente, é só porque nos posicionamos desta maneira que podemos superar os bloqueios ideológicos para o conhecimento científico das formações sociais do capitalismo periférico. Não deve espantar que a produção de conhecimentos científicos dependa de condições sociais e históricas ou, especialmente no caso da ciência social, de um posicionamento de classe. E isto, ainda que estes próprios conhecimentos não sejam, como veremos, “históricos”. Na medida em que uma formação social tende a produzir formações ideológicas que impedem o seu próprio conhecimento científico, este conhecimento só encontra suas condições reais no terreno teórico aberto pela luta daqueles que buscam transformar esta formação social e que, na prática desta transformação, verificam ou não a verdade de suas práticas. É por isso que a ciência social moderna é essencialmente uma ciência crítica – e na medida “em que tal crítica representa uma classe específica, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é o revolucionamento de todo o modo de produção capitalista e a abolição final das classes: o proletariado”[4].

Nosso estudo toma como objeto teórico geral, portanto, as formações sociais coloniais e semicoloniais e, em especial, as chamadas formações sociais híbridas, nas quais se articulam formas diversas de organização da produção social, formações que exercem uma função essencial no capitalismo periférico. Mas este estudo tem, sobretudo, um objeto teórico específico: o modo de articulação de diversas relações de produção distintas no interior da formação social brasileira e as formas híbridas que resultam desta articulação. No que diz respeito a este objeto, as ideologias pretensamente “científicas” se multiplicaram em uma grande variedade e a partir de todo tipo de posição[5], e talvez tivessem ocupado todas as posições ideológicas não fosse o grande trabalho teórico de Nelson Werneck Sodré. Pensamos, no entanto, ser fundamental buscar um desenvolvimento sistemático dos trabalhos de Sodré quanto ao problema preciso da articulação dos modos de produção, retomando-as com a contribuição de outros avanços teóricos do materialismo histórico latino-americano e mobilizando-as para uma explicação do atual estado da formação social brasileira. Nosso trabalho, portanto, não pretende ser uma análise histórica do desenvolvimento da formação social brasileira. Para esta análise, só nos cabe fazer referência aos trabalhos em que nos apoiamos, muito especialmente à Formação histórica do Brasil e Capitalismo e revolução burguesa no Brasil de Sodré. Este trabalho deve na mesma medida aos artigos de Fausto Arruda no jornal A Nova Democracia em todos os seus aspectos positivos, cabendo a nós obviamente os limites e erros de formulação.

    Na primeira parte de nosso estudo, retomamos e desenvolvemos o conjunto de categorias clássicas do materialismo histórico – modo de produção, relação de produção, formação social, formação social colonial e formação híbrida – que nos parecem fundamentais para uma compreensão científica de nosso objeto teórico, mas também as mobilizamos em casos exemplares para explicar as grandes etapas históricas de constituição da formação social brasileira (ou, para sermos mais exatos no período colonial, da formação social da América portuguesa). Na segunda parte do estudo, retomamos a discussão sobre o modo de produção feudal e sua presença nas formações sociais coloniais e semicoloniais, e apresentamos novos casos exemplares sobre a formação social brasileira. Ao longo do texto fizemos o uso extenso de citações de trabalhos teóricos do campo do materialismo histórico, em especial como resposta àqueles que recentemente puderam afirmar que a aplicação da categoria do modo de produção feudal ao mundo colonial não está presente na teoria do movimento comunista. O lado negativo foi tornar a leitura cansativa em certos pontos, mas julgamos que esta tática de escrita é importante na medida em que expõe que as categorias de formação híbrida, semifeudalidade e a aplicação da categoria de feudalismo às formações sociais coloniais têm uma longa história. Na última parte, retornamos ao problema das formações sociais híbridas para explicar o problema da semifeudalidade e desenvolvemos alguns elementos esquemáticos para análise da atual formação social brasileira. Nosso trabalho, como todo trabalho científico, permanece aberto. Deixamos, assim, um chamamento para que todos os comunistas que pensam com suas próprias cabeças o estudem e critiquem, contribuindo para seu desenvolvimento.

 

Sobre as formações híbridas - Parte 1: Modos de produção, formações sociais e formações sociais híbridas  

Sobre as formações híbridas - Parte 2: O modo de produção feudal  

Sobre as formações híbridas - Parte 3: O problema da semifeudalidade 



[1] Apresentaremos aqui apenas um confronte com as teses economicistas e historicistas, de aparência “marxista”, mas não com o culturalismo. Para uma crítica do culturalismo, ver AMIN, Samir. Eurocentrism, pp. 7-9, 20-22.

[2] Uma das principais funções da filosofia materialista dialética é, assim, a teoria das ciências, pela qual ela deve estabelecer uma demarcação entre a prática das ciências e as ideologias pseudocientíficas que buscam parasitá-las, limitando seu desenvolvimento. Ver, sobre este ponto, ALTHUSSER, Louis. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas, p. 41-45 e 144-147. Não poderemos aqui desenvolver uma crítica detalhada de todas estas ideologias, mas cabe lembrar que toda a obra de Marx e Engels é também uma luta teórica contra estas tendências.

[3] Como, por exemplo, nos trabalhos teóricos de Althusser ou de Samir Amin, que terão grande importância em nosso estudo. Nos parece que mesmo que as descobertas chinesas tenham sido compreendidas de maneira incompleta por estes teóricos, a justeza de muitas de suas teses é, também, o efeito teórico da justeza destas novas verdades apresentadas pela Revolução Chinesa. O caso de Althusser é exemplar: ali onde suas principais teses filosóficas estão corretas (o primado das relações de produção, o a teoria da sobredeterminação, a crítica do humanismo/economicismo, a eficácia específica da ideologia, a análise da nova prática da filosofia implicada pelo marxismo, etc.) elas são efeitos teóricos da linha maoista, ao mesmo tempo em que grande parte de seus erros e suas lacunas são também consequências da insuficiência de sua compreensão (a tendência ao formalismo e ao teoricismo, o abandono da especificidade problemática da filosofia marxista, etc.). Estas insuficiências teóricas tiveram um papel importante nos erros políticos de Althusser.

[4] MARX, Karl. O capital – livro I ¸ p. 87.

[5] Desde as formas culturalistas, mesmo em elaborações parcialmente opostas como a da posição pequeno-burguesa e “progressista” de Sérgio Buarque de Holanda e da posição burguesa e reacionária de Gilberto Freyre, passando pelas formas economicistas das teses de Octavio Brandão e Jacques Lambert, às teses historicistas de Caio Prado Júnior e Ciro Cardoso.

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