A tendência geral de desenvolvimento histórico dos modos de produção segue uma sequência bem determinada. É sua correspondência com o nível de desenvolvimento das forças produtivas que determina esta sequência, de maneira que, no plano geral, os modos de produção não se sucedem historicamente em uma ordem aleatória. No entanto, não se pode aceitar de modo algum a tese mecanicista segundo a qual todas as formações sociais deveriam repetir concretamente a sequência histórica geral dos modos de produção. E isto principalmente porque o ritmo de desenvolvimento histórico dos modos de produção é sempre desigual.
No caso dos modos de produção pré-capitalistas, a desigualdade dos ritmos de desenvolvimento se devia, em parte, à desigualdade das condições ecológicas e da abundância ou escassez de recursos determinados no ambiente em que as formações sociais particulares se desenvolviam. Este ritmo de desenvolvimento, além disso, pode sofrer a pressão de inúmeros outros acontecimentos externos à dinâmica estrutural dos modos de produção e que podem influencia-lo, seja acelerando a destruição do antigo modo de produção, seja destruindo as condições para o surgimento de um modo de produção novo (epidemias, catástrofes climáticas, invasões militares, etc.).
Como vimos, no entanto, na determinação do desenvolvimento heterogêneo dos modos de produção este condicionamento do desenvolvimento das forças produtivas pelas condições ambientais ou por acontecimentos contingentes é secundário em relação à capacidade das formações sociais de bloquearem o desenvolvimento de novos modos de produção em favor da reprodução de seu modo de produção dominante. Sempre que o desenvolvimento das forças produtivas atinge seu limite máximo no interior da estrutura de um modo de produção determinado, o problema da reprodução das relações de produção dominantes passa a ter um papel fundamental no interior de uma formação social. O que está em questão, nestes momentos, é a capacidade das relações de produção antigas de reproduzir sua existência e bloquear o desenvolvimento de novas relações de produção. Este bloqueio pode retardar por uma longa duração a estruturação de um novo modo de produção, ainda que não possa fazê-lo indefinidamente. Nestas situações, é apenas o resultado global da luta de classes que pode determinar ou a reprodução do antigo modo de produção e o bloqueio do novo, no caso de uma vitória das classes dominantes, ou a decomposição do antigo modo de produção e a estruturação do novo, no caso de vitória das classes dominadas.
Portanto, como consequência desta desigualdade de desenvolvimento, em todos os períodos históricos deverá haver uma grande heterogeneidade de formações sociais que articulam diferentes modos de produção e em diferentes fases de desenvolvimento.
A modernidade, definida pelo surgimento e pela dominação do modo de produção capitalista, é sem dúvidas a era histórica de maior heterogeneidade, levando a desigualdade de desenvolvimento a seu nível extremo. Além da heterogeneidade pré-capitalista, vimos como o sistema colonial organizado pela acumulação primitiva de capitais dependia da reprodução de modos de produção pré-capitalistas nas colônias, articulando uma imensa diversidade de modos de produção distintos e ao mesmo tempo subordinados à acumulação capitalista. A heterogeneidade das formações sociais é, na modernidade, não apenas a sua desigualdade regional e “espontânea” de desenvolvimento. Esta heterogeneidade se intensifica, então, em função da reprodução ativa de formas pré-capitalistas agora subordinadas a formas capitalistas, em uma a articulação do passado com o presente não apenas como o tempo que “passou”, mas como o tempo passado que persiste no interior próprio presente. É a esta situação que cabe rigorosamente a categoria da heterocronia.
É a pluralidade do tempo que permite que as linhas de desenvolvimento das formações sociais sejam diversas. Ora, esta pluralidade atinge seu limite máximo de complexidade nas formações sociais modernas. Um dos principais limites teóricos do historicismo de matriz hegeliana sempre foi a incapacidade de compreender esta pluralidade temporal, especialmente a ideia de que estas diversas linhas de desenvolvimento não podem ser unificadas sob a dominação do presente. Para o historicismo, a presença do passado no presente é sempre a de uma “sobrevivência”, de um atavismo que tende necessariamente a ser superado pelo processo de desenvolvimento. Para o materialismo histórico, no entanto, o desenvolvimento pode e deve ser compreendido como heterogêneo. Foi, antes de tudo, o marxismo que compreendeu que a modernidade não é apenas um processo em linha reta que deve superar todos os arcaísmos dos antigos modos de produção, mas que em muitos casos ela integra formas pré-capitalistas a sua dinâmica, as reproduz e desenvolve como arcaísmos próprios a ela[1].
Esta heterogeneidade temporal se reflete não apenas na reprodução do arcaico, mas na abertura de novas linhas de desenvolvimento possíveis. O marxismo revolucionário sempre defendeu a tese de que é possível a uma formação social em uma fase anterior de desenvolvimento saltar a uma fase posterior sem passar pelas fases intermediárias, com a condição de “absorver” as forças produtivas desenvolvidas em formações sociais externas. Marx o afirma abertamente quando do debate sobre a comuna agrária russa em 1875, ao dizer que caso a Rússia se encontrasse isolada do mundo e tivesse de se desenvolver de maneira absolutamente independente, a comuna agrária deveria ser decomposta ao longo de seu desenvolvimento exatamente como aconteceu nos países da Europa ocidental, mas que “a situação da comuna russa é absolutamente diferente da situação das comunidades primitivas do Ocidente”. Na Rússia, diferentemente de todos os outros países europeus, as comunidades primitivas haviam sobrevivido em larga escala até o fim do século XIX – ainda que em um processo acelerado de decomposição no momento das afirmações de Marx – ao mesmo tempo em que conviviam com um ambiente histórico moderno, coexistindo com o mercado mundial e a produção capitalista. “Apropriando-se dos resultados positivos desse modo de produção, ela está, portanto, em condições de desenvolver e transformar a forma ainda arcaica de sua comuna rural ao invés de destruí-la”[2]. Do mesmo modo, Mao Tsétung escreve em Sobre a contradição: “Por que a Revolução Chinesa pode evitar um futuro capitalista e ser diretamente vinculada com o socialismo, sem tomar a velha estrada histórica dos países ocidentais, sem passar por um período de ditadura burguesa? A única razão são as condições concretas da época”[3].
Estas teses, obviamente, não podem ser confundidas com as teses voluntaristas segundo as quais é possível a transição de um modo de produção para qualquer outro. É sempre sobre a base de um determinado nível de forças produtivas que a transição se torna possível e, nestes casos, trata-se sempre da integração de novas forças produtivas de origem externa como condição para este salto histórico. Este salto não diz respeito, aliás, apenas ao caso da transição ao socialismo, como aponta Marx no mesmo texto sobre a questão russa. Ele é possível sempre que uma determinada formação social se encontra com condições de produção mais complexas dadas em formações sociais exteriores. O desenvolvimento histórico das formações sociais opera, assim, segundo uma tendência estrutural geral que depende do nível das forças produtivas, ao mesmo tempo em que nas suas formas concretas particulares pode não ser, e em muitos casos não é, linear. Ou, antes, deve-se compreender que no seu desenvolvimento concreto as linhas de desenvolvimento histórico são necessariamente heterogêneas.
Como afirmamos, nas formações sociais coloniais e semicoloniais esta heterogeneidade assume características especialmente complexas em comparação ao processo de transição das formações sociais pré-capitalistas ao capitalismo. Nestes casos o modo de produção capitalista se desenvolveu de forma linear, os modos de produção coexistiam segundo uma sucessão temporal mais ou menos regular. Em seu desenvolvimento, a acumulação capitalista nos países centrais subordinou a si os processos de produção pré-capitalistas, mas esta subordinação, a chamada subsunção formal, não chegava a alterar a orientação da tendência histórica de desenvolvimento dos modos de produção. Na subsunção formal, o capitalismo já é o modo de produção dominante, mas utiliza as relações de produção dos modos de produção dominados para sua própria reprodução. Mais do que isto: estes modos de produção já estão integrados ao próprio processo de acumulação de valor e se encontram em formas transitórias rumo ao capitalismo. Nas fases inicias deste processo, a reprodução das formas de produção pré-capitalistas é uma das condições do desenvolvimento da acumulação capitalista, mas estas formas entram em uma contradição cada vez mais profunda com este processo de acumulação ao longo do tempo. Daí seu caráter transitório e uma forte tendência à decomposição das formas pré-capitalistas em questão. A situação da subsunção formal dá lugar, então, a uma nova fase do desenvolvimento capitalista na qual o capitalismo já não tem necessidade de reproduzir estas relações de produção dos modos de produção dominados[4].
No caso das formações sociais coloniais e semicoloniais a reprodução de modos de produção pré-capitalistas é também uma das condições da acumulação capitalistas, mas, por um lado, ela não se encontra em uma contradição antagônica com o desenvolvimento capitalista, sendo imposta pela própria situação colonial. Aqui, o desenvolvimento capitalista não exclui estas formas e tende mesmo a reproduzir sua dependência destas formas, ainda que possa alterá-las e reduzir substancialmente sua amplitude Veremos adiante as causas específicas para esta complementaridade entre os modos de produção pré-capitalistas e as formas coloniais e semicoloniais do desenvolvimento capitalista. Devemos afirmar desde já, no entanto, que a compreensão justa da natureza destes modos de produção e de sua integração com o desenvolvimento capitalista são a chave para a elaboração de uma avaliação correta das formações sociais em questão e, portanto, para a construção de programas concretos para sua transformação.
Colocado este problema, nos parece que há um modo de produção cuja caracterização e definição são de grande importância para a análise das formações sociais coloniais e semicoloniais desde as etapas intermediárias da fase moderna do processo histórico. A compreensão confusa da natureza deste modo de produção levou e ainda leva, em muitos casos, a uma série de deslizes na compreensão das formações sociais periféricas. Trata-se do modo de produção feudal.
Por toda a obra de Marx, nos deparamos com caracterizações dos traços gerais das formações sociais feudais, em especial no que diz respeito à problemática de sua transição ao capitalismo na Europa ocidental. Estas caracterizações gerais foram sistematizadas em muitos trabalhos posteriores do materialismo histórico, mas também puderam gerar certas confusões na medida em que eram tomadas como uma definição das relações de produção feudais – definição que Marx apresenta de modo sistemático e rigoroso apenas no livro III de O capital.
Por exemplo, o Centre d’Études et RecherchesMarxistes(Centro de Estudos e Pesquisas Marxistas/CERM), fundado em 1960 pelo Partido Comunista da França – já, então, em sua fase revisionista – afirma em seu dossiê Sobre o feudalismo que as características principais “no que respeita às relações de produção” quanto ao modo de produção feudal são
“1º - As relações sociais de produção estabelecem-se essencialmente em torno da terra, porque assentam numa economia predominantemente agrícola.
2º - Os trabalhadores têm sobre a terra direitos de utilização e de ocupação, mas a propriedade pertence a uma hierarquia de senhores, da qual nenhum tem a disposição absoluta do solo, mas tendo cada um, sobre o produto ou heranças dos seus inferiores, direitos de apropriação fixados pelo costume.
3º - A esta base econômica corresponde toda uma rede de laços pessoais: uma parte dos trabalhadores – a maioria, nas épocas de desenvolvimento típico – não goza de inteira liberdade pessoal; não há ‘escravatura’ (propriedade da pessoa), mas ‘servidão’ (ligação do camponês ao seu senhor, ‘homo proprius’, e, mais tarde, à sua exploração, ‘adscriptus glebae’); mesmo entre senhores, o sistema de propriedade encontra-se ligado a um sistema de deveres (em particular militares) devidos à pessoa do superior”[5]
Devemos reconhecer que todas estas características de fato estão profundamente associadas ao modo de produção feudal e que do ponto de vista histórico, são elementos importantes para uma caracterização preliminar do feudalismo. Mas buscar nelas a essência deste modo de produção não é correto. É verdade que as formações sociais dominadas pelo modo de produção feudal tendem a desenvolver redes de laços sociais de dependência em que parte dos trabalhadores não tem “inteira liberdade pessoal”, sendo diretamente ligados a seus senhores ou aos processos de exploração a que estão vinculados, e que mesmo os senhores tendam a se relacionar por um sistema de deveres; é verdade também que, nos processos de trabalho feudais, os trabalhadores têm “direitos de utilização e de ocupação” sobre a terra, esta pertencendo, no entanto “a uma hierarquia de senhores” que detém “direitos de apropriação” sobre o produto. No entanto, estas características, são superestruturais, e não definem a estrutura do modo de produção feudal. Ainda que tenham um papel central, elas decorrem da estrutura deste modo de produção muito mais do que o definem.
Quanto à questão da centralidade da propriedade da terra, a condição objetiva geral da estruturação do modo de produção feudal certamente é um nível de desenvolvimento das forças produtivas que a implica, assim como a“produção agrária”. No entanto, é perfeitamente possível o desenvolvimento de formas de capitalismo agrário em uma formação social que tornem sua produção econômica “predominantemente agrícola”, sem que por isso se desenvolvam necessariamente formas de feudalização. O que esta caracterização ignora é, neste caso, a forma específica de apropriação da terra e da produção excedente implicadas pelo modo de produção feudal.
Na propriedade fundiária capitalista a terra é apenas um fator de produção secundário em relação ao capital e ao trabalho. Não se trata, obviamente, de fazer uma partilha mais ou menos arbitrária entre os processos de produção “naturais”, por um lado, nos quais as principais condições objetivas da produção são “encontradas” de maneira espontânea no meio ambiente e os processos de produção “históricos”, por outro, em que as principais condições objetivas seriam aquelas criadas pelo trabalho humano. O solo agrícola é sempre o resultado do processo do trabalho humano acumulado que o prepara e altera sua fertilidade, assim como nenhum processo produtivo opera no vazio sem utilizar forças da natureza. Trata-se, na verdade, de determinar as condições sociais específicas de apropriação da terra, e portanto seu papel no processo de produção social. A produção agrícola capitalista implica necessariamente, como vimos, a separação entre os produtores e os proprietários das condições de produção, de tal maneira que os produtos do processo de produção pertencem ao proprietário e são trocados por dinheiro no processo de circulação capitalista, realizando o lucro do capitalista. Pelas leis estruturais da produção capitalista, a terra deverá se tornar objeto de um investimento intensivo de capitais com o objetivo de aumentar sua produtividade, tornando-se, assim, um fator secundário em relação a estes capitais e à força de trabalho.
Ora, nos modos de produção pré-capitalistas, o acesso dos produtores à terra era sempre regulado, mas tratava-se de um acesso direto e no qual estes controlavam diretamente o processo de trabalho. É este acesso direto que tende a limitar o nível de desenvolvimento técnico dos instrumentos de trabalho, uma vez que o processo de trabalho está vinculado de maneira direta, ainda que parcial, às necessidades de subsistência do produtor. Os produtos excedentes dos quais as classes dominantes se apropriam e que formam sua riqueza são extraídos métodos próprios, sendo sempre relativamente dependentes da produtividade do trabalho dos produtores diretos e da fertilidade dos solos. O produto excedente da terra, entendido como o excedente acumulado pelas classes dominantes em função de sua apropriação dos produtos agrícolas, é, com isso, bastante desigual nas formações sociais dominadas por modos de produção pré-capitalistas[6].
Assim, seria mais preciso caracterizar o modo de produção feudal não por sua “economia predominantemente agrícola”, mas pelas condições sociais específicas nas quais esta economia se estrutura, e que fazem com que a renda fundiária tenda, em seu interior, a se tornar a principal forma de extração do excedente do processo de produção.
As tentativas de definição do modo de produção feudal que partem destas formas de caracterização, ou de formas análogas, tendem a se aproximar seja do historicismo, seja do economicismo.
Do historicismo na medida em que tendem a afirmar o caráter feudal de uma determinada formação social pela presença de elementos superestruturais presentes nas formas típicas de apresentação do modo de produção feudal: a presença de uma organização patriarcal da sociedade, de uma rede difusa de relações sociais de dependência pessoal ou de formas jurídicas e políticas presentes nas formações sociais feudais. Estes erros são, aliás, relativamente comuns, e mesmo trabalhos como o de Alberto Passos Guimarães – de resto, essencial para se compreender o problema fundiário no Brasil e correto em suas teses principais – incorrem nele na medida em que tendem a afirmar a feudalidade a partir destes elementos[7].
Do economicismo na medida em que tendem a afirmar o caráter feudal de uma determinada formação social a partir de certos aspectos parciais da organização da produção agrícola e dos processos de trabalho relativos: a concentração fundiária, a agricultura extensiva, um uso ineficiente e exaustivo da produtividade dos solos, o baixo nível técnico dos instrumentos de trabalho ou a existência de uma economia de subsistência. Neste caso, os erros decorrem da tentativa de definir um modo de produção por determinados aspectos isolados do nível de desenvolvimento das forças produtivas, sem colocar o problema central das condições sociais específicas nas quais estes elementos se apresentam no modo de produção feudal. É o que acontece com os trabalhos de Octávio Brandão, fundamentais para a elaboração das posições do revisionismo brasileiro, ou mesmo com os de Celso Furtado– este último, no entanto, apresentando algumas elaborações importantes e que retomaremos de maneira crítica.
Basta, aqui, indicar que em ambos os casos se toma os efeitos como causas, invertendo a ordem científica para a análise dos modos de produção. Ao definir a feudalidade por seus efeitos superestruturais ou por aspectos isolados do nível de desenvolvimento das forças produtivas a que ela corresponde e não por sua estrutura, estas posições teóricas podem levar a uma caracterização parcial, e, portanto, errada, de sua realidade, e a programas de intervenção francamente equivocados, ligados ao revisionismo e ao reformismo.
Uma análise justa do modo de produção feudal deve partir da definição de suas relações de produção essenciais, retomando a análise de Marx. É este o caminho que segue Maurice Dobb em seus Estudios sobre eldesarrollo del capitalismo ao abordar o problema:
“Para evitar uma prolixidade impertinente, deve bastar que postulemos, se desenvolver mais a argumentação, a definição do feudalismo que propomos adotar no que segue. Ela não destacará a relação jurídica entre vassalo e soberano, nem a relação entre a produção e o destino do produto, mas a relação entre o produtor direto (seja este o artesão de uma oficina ou o camponês que cultiva a terra) e seu superior ou senhor imediato e o conteúdo econômico-social da obrigação que os liga. De acordo com a noção de capitalismo que discutimos no capítulo anterior, esta definição caracterizará o ‘feudalismo’, primeiramente, como um ‘modo de produção’; e isto constituirá a essência de nossa definição. Com isto, ela será virtualmente idêntica ao que geralmente entendemos por servidão: uma obrigação, imposta à força, independentemente de sua vontade, ao produtor de cumprir certas exigências econômicas de um senhor, tomem estas a forma de serviços a prestar ou de obrigações a pagar em dinheiro ou em espécie (...)”[8].
A identificação do feudalismo à servidão vai diretamente à essência do problema: a definição da relação de produção fundamental na estruturação do modo de produção feudal. É esta a relação de produção que veremos assumir um papel dominante nas formações sociais medievais e sobre a qual serão organizadas as relações sociais de dependência pessoal entre os produtores e os proprietários, a organização patriarcal da sociedade e uma forma de Estado voltada para o controle militar local da população. Para o materialismo histórico, trata-se de afirmar uma definição do feudalismo por seu “conteúdo econômico-social”, ou seja, pelas relações de produção que constituem o fundamento de sua atividade produtiva. Devem ser recusadas, assim, todas as tentativas de definição do feudalismo por suas instituições jurídicas, pelas formas de circulação ou consumo do produto social ou pelas demais circunstâncias concretas das diversas formações sociais dominadas pelo modo de produção feudal. Em suma: a ciência social exige uma categoria econômica de feudalismo, e não uma categoria jurídica ou histórica (entendida como uma categoria empírica relativa a um determinado período histórico).
É no mesmo sentido que Althusser busca caracterizar as relações de produção feudais. Nelas
“O servo detém seus meios de produção (ele aparece assim como ‘pequeno produtor independente’: esta categoria é típica do modo de produção feudal, ele vale tanto para o servo quanto para o artesão das cidades), mas esta detenção é a forma sob a qual aparece a não-detenção. O servo, para considerar apenas este, não detém nem os meios de produção (propriedade eminente, como diz o direito feudal, do senhor) nem sua força de trabalho (o senhor consente que ele a empregue para produzir aquilo com o que sobreviver e se reproduzir), mas 1. ele cobra tributos sobre os produtos e 2. ele emprega a força de trabalho para si, em seus campos que o servo cultiva em troca de nada, e para suas corveias (...) A relação de produção feudal se caracteriza então da seguinte maneira: não detenção dos meios de produção e da força de trabalho pelos produtores imediatos sob a forma da aparente detenção dos meios de produção (pequeno produtor independente) com a não detenção da força de trabalho e do produto”[9].
A servidão se define, assim, como a relação de produção na qual o produtor é “obrigado” a entregar sua força de trabalho e os produtos de seu trabalho às classes dominantes. Esta obrigação adquire necessariamente um caráter “extraeconômico”, o produtor sendo coagido diretamente à prestação de serviços ou à entrega de seu produto excedente. A obrigação se impõe em função da relação entre os produtores e os meios de produção, uma vez que ambos se encontram diretamente vinculados, o produtor tendo o controle do processo de trabalho imediato.É isto que Althusser aponta ao falar da aparência – aparência real, no entanto, posto que tem efeitos diretamente no processo produtivo – da detenção dos meios de produção pelo produtor e a ilusão do “pequeno produtor independente”, uma vez que esta detenção é subordinada à obrigação de entrega do produto excedente aos senhores, obrigação que pode também assumir a forma do pagamento em trabalho (quando o produtor direto paga ao senhor com seu trabalho pela posse de uma parcela de terra) ou, no caso de formas feudais já em transição ao capitalismo, do pagamento em dinheiro (quando o pagamento pela parcela de terra é efetuado em dinheiro).
É esta mesma relação que explica, aliás, a dominação da instância jurídica e política nas formações sociais dominadas pelo modo de produção feudal, uma vez que é por meio delas que esta obrigação econômica é garantida e exercida. Do ponto de vista da organização do aparelho de repressão do Estado o exercício desta obrigação implica uma distribuição regional de forças militares relativamente fixas e próximas das unidades produtivas, de maneira a garantir a coerção do produtor quanto à entrega de sua força de trabalho e de seu produto para as classes dominantes. Além disso, o modo de produção feudal tende a gerar um cenário ideológico no qual as classes dominantes devem aparecer como credores e beneficiários naturais dos produtos do trabalho das classes dominadas, estas devendo ser ligadas às primeiras por vínculos de dependência pessoal (daí as variadas formas da ideologia patriarcal e a importância das ideologias religiosas que fazem dos dominantes mandatários divinos, tão comuns em todas as formações sociais feudais).
Vemos, assim, porque e como a estrutura do modo de produção feudal impõe uma tendência geral ao desenvolvimento de formas superestruturais típicas associadas à feudalidade, sem que este modo se defina por elas ao mesmo tempo em que estas formas superestruturais assumem uma função central neste modo de produção. A importância de aponta-lo se deve, primeiramente, ao fato de que esta tendência geral não se verifica em absolutamente todos os casos empíricos, a formação das superestruturas jurídicas e políticas variando imensamente a casa situação concreta.
Ora, se as tentativas de definição anteriores são corretas – e o são – é porque não fazem outra coisa além de desenvolver aquela primeira definição da base real da produção feudal elaborada por Marx no terceiro livro de O capital. Com efeito, Marx afirma em sua obra que
“É evidente, ademais, que em todas as formas em que o trabalhador direto continua a ser ‘possuidor’ dos meios de produção e das condições de trabalho requeridos para a produção de seus próprios meios de subsistência, a relação de propriedade tem de aparecer simultaneamente como relação direta de dominação e de servidão, e, assim, o produtor direto como alguém não livre; essa carência de liberdade poderá atenuar-se gradativamente desde a servidão com trabalho pessoal até a mera obrigação tributária. Conforme os pressupostos, o produtor direto detém em seus próprios meios de produção as condições objetivas de trabalho requeridas para a realização de seu trabalho e para a produção de seus meios de subsistência; ele exerce a agricultura de forma autônoma, bem como a indústria rural caseira vinculada a ela. Tal autonomia não é suprimida pelo fato de, como na Índia, esses pequenos camponeses formarem uma comunidade de produção mais ou menos resultante de um processo natural, porquanto aqui se tem somente a autonomia em face do proprietário nominal da terra. Em tais condições, o mais-trabalho só pode ser extraído deles pelo proprietário nominal da terra por meio da coerção extraeconômica, qualquer que seja a forma em que esta se apresente. O que a diferencia da economia escravista ou de plantação é que nesta o escravo opera com condições de produção alheias, e não de modo autônomo. São necessárias, pois, relações de dependência pessoal – a falta da liberdade pessoal, seja qual for o seu grau, e estar preso à terra como um acessório desta última, a servidão da gleba, no sentido próprio do termo. Se não é o proprietário fundiário privado, mas, como na Ásia, o Estado que se confronta diretamente com eles como proprietário fundiário e, ao mesmo tempo, como soberano, então renda e impostos coincidem, ou melhor, não há nenhum imposto que se diferencie dessa forma da renda fundiária. Em tais circunstâncias, a relação de dependência, tanto política como econômica, não precisa assumir nenhuma forma mais rígida do que aquela comum a todos os súditos perante o Estado. O Estado é o supremo proprietário fundiário. A soberania é a propriedade fundiária concentrada em escala nacional. Em contrapartida, tampouco há a propriedade privada do solo, embora exista a posse e o usufruto, tanto privados quanto públicos da terra”[10].
Esta passagem é extremamente importante, definindo rigorosamente a servidão. Na medida em que o produtor direto continua a deter a posse dos meios de produçãoo excedente só pode ser extraído dele por meio da coerção extraeconômica em suas variadas formas, desde a tributação até a obrigação da prestação de trabalhos pessoais. A detenção da posse dos meios de produção pelo produtor direto dá a este a “autonomia” na organização do processo de trabalho, ao mesmo tempo em que esta “autonomia” está diretamente subordinada, por meio da coerção, a obrigações econômicas para com um senhor que se apropria dos produtos e, por meio destes, da força de trabalho do produtor. Esta relação de produção, como afirma Marx, é distinta daquela da escravidão, uma vez que nesta o escravo “opera com condições de produção alheias”, tendo, como vimos, seu próprio corpo reduzido a uma destas “condições de trabalho alheias” ao se ver como objeto de apropriação direta como instrumento de trabalho do proprietário. A própria força de trabalho do produtor é apropriada como um instrumento de trabalho. Enquanto tal, o escravo não tem qualquer forma de controle do processo de trabalho e nem pode se apropriar de seus produtos; ali onde isto acontece é porque, como veremos, a escravidão já se encontra em transição para formas de servidão, independentemente das formas jurídicas sob as quais esta transição aconteça. Na servidão a falta de liberdade pessoal, as relações de dependência e a dominação direta são, antes, as formas específicas pelas quais a coerção extraeconômica do produtor autônomo aparece. Daí a importância de distinguir entre uma categoria econômica de servidão (e, portanto, de feudalismo) e uma categoria jurídica de servidão (e, portanto, de feudalismo). É exatamente neste sentido que Mao Tsétung caracteriza o modo de produção feudal na formação social chinesa.
“Os camponeses produziam, para si próprios, tanto os gêneros agrícolas quanto a maioria dos artigos artesanais de que necessitavam. O que os senhores de terras e a nobreza lhes extorquiam sob a forma de renda da terra igualmente se destinava antes de mais ao consumo privado, e não à troca. (...) A classe dominante feudal – senhores de terras, nobres e imperador – detinha a propriedade da maior parte da terra, deixando os camponeses com pouca ou nenhuma terra. Os camponeses lavravam a terra dos senhores de terras, nobres e família imperial com seus próprios instrumentos agrícolas e tinham ainda que fornecer-lhes, para consumo privado, quarenta, cinquenta, sessenta, setenta ou mesmo mais de oitenta por cento de suas próprias colheitas”[11]
Além disso, podemos ver que Marx retifica sua hipótese anterior de um “modo de produção asiático” ao identificar, pelas relações de produção da servidão,as bases econômicas das formações sociais medievais europeias e asiáticas. É sintomático que aqueles que até hoje defendem esta hipótese se contentem com citações isoladas de certos trabalhos de Marx, mas ignorem as posições sistemáticas de O capital. Não é um acaso que os aparelhos universitários ligados ideologicamente aos modelos euro-americanos tenham adotado de maneira unilateral a hipótese do “modo de produção asiático”. Ao apresenta-la nos Grundrisse, Marx ainda se encontrava em um período inicial da elaboração dos materiais que seriam sistematizados em O capital. O texto dos Grundrisse é formado por cadernos preparatórios escritos por Marx por volta de 1857, sob um forte impacto da leitura da filosofia de história de Hegel, e sua publicação na década de 1930 deu lugar a uma grande onda de “marxologia” universitária, na medida em que se buscava encontrar nos Grundrisse uma versão humanista do marxismo que seria a chave teórica que explica toda a obra madura de Marx. No entanto, grande parte das posições expostas por Marx nos Grundrisse será reelaborada e retificada em O capital, e a questão do “modo de produção asiático”[12] é uma destas.
Segundo os defensores da hipótese do “modo de produção asiático”, como Ferenc Tökei e Maurice Godelier, o desenvolvimento do modo de produção comunista primitivo poder tomar duas rotas: ou a comunidade primitiva se decompõe dando lugar a formas desenvolvidas de escravismo e da propriedade privada da terra, como na Grécia ou em Roma, ou ela se mantém a mesma sendo subordinada ao desenvolvimento de um Estado despótico que a tributa. A manutenção das comunidades primitivas levaria a uma estagnação do desenvolvimento das forças produtivas, o que seria a causa da aparente “imobilidade” histórica das formações sociais “asiáticas”.
Como aponta Samir Amin, esta hipótese é falsa do início ao fim e só está baseada na mitologia eurocêntrica do século XIX e em sua imensa falta de informação sobre as formações sociais asiáticas. A comunidade primitiva da terra se decompôs muito rapidamente nos casos do antigo Egito e da China, e só subsistiu de forma bastante alterada na Índia medieval, casos supostos de apresentação do “modo de produção asiático”, todos eles já apresentando a propriedade privada da terra da mesma maneira que a Europa. Além disso, o desenvolvimento das forças produtivas na Ásia tinha, até o início do século XVIII, um nível comparável, e em certos casos mesmo superior, ao da Europa. Em suma, a recuperação do “modo de produção asiático”, ignorando a identificação que Marx afirma em O capital entre os modos de produção baseados na servidão, repete a velha ideologia culturalista eurocêntrica, a mesma que Marx havia encontrado na Filosofia da História de Hegel e que afirmava abertamente a tese da “imobilidade” das sociedades asiáticas[13]. O que não quer dizer, bem entendido, que não exista uma forma de Estado “asiática” que caracteriza as formações sociais dominadas pelo modo de produção feudal tal como se apresentam com uma série de particularidades comuns no continente asiático, naquilo que já se pôde chamar de “feudalismo de Estado”.
Se a servidão é a verdadeira base que define tanto as formações sociais medievais europeias quanto as formações sociais antigas e medievais asiáticas, não se poderia colocar em questão sua designação como “feudal”?Como já se afirmou, o termo “feudal” não tem a mesma natureza que os temos utilizados para nomear os modos de produção escravista ou capitalista, uma vez que nestes últimos casos o termo utilizado descreve a relação de produção fundamental destas estruturas econômicas. O “feudalismo”, por outro lado, é um termo que está ligado a uma superestrutura política, o “fief”, característica de determinada apresentação deste modo de produção baseado na servidão, a saber, aquela desenvolvida no período do medievo europeu[14]. O feudo designava, então, uma porção de terra oferecida por um suserano como concessão a um vassalo, ganhando este o direito de explorar o trabalho dos produtores ligados a este território na servidão. De fato, ao longo da história houveram outras formações sociais baseadas na estrutura econômica da servidão que dispensavam a instituição do feudo, como por exemplo o caso das formações asiáticas a que Marx se refere.
Seria, portanto, necessário acompanhar a afirmação que defende a substituição da designação do “modo de produção feudal” pela de “modo de produção servil”[15]? Pensamos que esta tese é parcialmente correta, uma vez que define com precisão a relação de produção fundamental deste modo de produção. O uso do termo feudal tende a levantar uma confusão entre a determinação das relações de produção que constituem a base desta estrutura econômica e uma de suas formas possíveis de apresentação histórica, em especial a da Europa medieval. As instituições feudais não constituem, como se acreditou, a forma típica para a qual tendem as superestruturas de todas as formações sociais dominadas por este modo de produção, como o demonstram as formações sociais “asiáticas”. A servidão constitui a essência desde modo de produção, sua determinação econômica fundamental. No entanto, se do ponto de vista científico esta designação se justifica, por outro lado ela corre o risco de resultar em uma certa tendência formalista, na medida em que defende uma substituição relativamente voluntarista da terminologia já estabelecida desde a Internacional Comunista para a nomeação deste modo de produção, designação que se tornou usual em todo o movimento comunista.
O importante, em todo caso, é a compreensão de que a designação teórica deste modo de produção depende, como mostramos, da construção de uma categoria econômica, e não jurídica ou histórica, sendo possível a distinção entre uma categoria econômica de feudalismo, idêntica à categoria econômica de servidão, e uma categoria histórica de feudalismo. É neste sentido que iremos nos referir ao modo de produção feudal, à feudalidade e à semifeudalidade.
A partir deste ponto, pensamos poder retomar de maneira mais consistente à questão da existência do modo de produção feudal nas formações sociais coloniais e semicoloniais da América Latina. Este debate opôs, durante muito tempo, os que defendiam de maneira confusa o caráter feudal das formações sociais coloniais e semicoloniais latinoamericanas, partindo das caracterizações historicistas ou economicistas que apontamos[16], e aqueles que defendiam o caráter capitalista destas formações sociais em razão de sua integração ao mercado mundial e sua subordinação à acumulação de capital dos países centrais. Ambas estas posições, no entanto, partiam de concepções antimarxistas, uma vez que disputavam a definição da natureza das sociedades latinoamericanas a partir de elementos relativos à circulação, a aspectos parciais do nível de desenvolvimento das forças produtivas ou as superestruturas, e não a partir da análise dos modos de produção[17] que formam a verdadeira base econômica destas formações sociais.
Como vimos, é verdade que as formações sociais coloniais e semicoloniais estão subordinadas ao processo de acumulação de capitais nos países sociais centrais e que a situação que ocupam no interior do sistema colonial é responsável pela determinação de aspectos centrais de suas formas de desenvolvimento. Esta subordinação no nível da circulação tem, certamente, impactos importantes em suas bases econômicas. No entanto, isto não substitui de modo algum a prioridade da análise do modo de produção e das relações de produção próprias de uma formação social, nem sua função dominante na determinação das linhas de desenvolvimento destas formações sociais. Uma vez assumida a posição científica da prioridade teórica da análise das estruturas produtivas, se torna evidente, como vimos, que os modos de produção mobilizados na fase inicial das formações sociais coloniais e semicoloniais não podem ser caracterizados como um modo de produção capitalista.
Com efeito, durante a colonização da América Latina, nas zonas de densa ocupação pelas populações indígenas, os produtores imediatos não foram separados dos meios de produção, como exigiriam as relações de produção capitalistas, mas submetidos a um conjunto de obrigações e tributos que reproduziam parcialmente as formas feudais europeias, enquanto em outras zonas, como nas Antilhas ou na América Portuguesa, a escravidão desempenhou o papel principal no início do processo de colonização. Foi nestas bases que se desenvolveu o que os marxistas identificaram como a apresentação específica do modo de produção feudal na América Latina, entendido como um conjunto de processos de trabalho determinados pela coerção extraeconômica como forma de apropriação do produto excedente da atividade dos produtores diretos pelas classes dominantes.
A forma típica da exploração feudal na fase inicial da colonização da América Latina, desenvolvida especialmente nos territórios da América Espanhola, foi a das encomiendas. Nestas, grupos de indígenas eram confiados pela empresa colonizadora a um colonizador, que assumia formalmente as tarefas de “protege-los” e catequiza-los. Em troca, o colonizador, chamado encomendero, recebia o direito de explorar o trabalho destes indígenas. Os indígenas, então, eram submetidos à obrigação, imposta à força, de suprir as exigências econômicas de seu senhor, em especial na forma da produção agrícola. No caso da América Portuguesa, as formas feudais apareceriam sobretudo com as transformações da escravidão, a mineração e a economia pastoril desenvolvidas a partir do século XVIII. No entanto, mesmo na América Portuguesa desde o início do processo colonial se estruturaram formas feudais de exploração do trabalho, ainda que de maneira marginal, nas zonas extrativistas das missões jesuíticas na região da Amazônia, cujo processo de trabalho era análogo ao das encomiendas, e, em menor escala, no caso dos agregados rurais que forneciam gêneros de subsistência aos engenhos de açúcar já desde o século XVI[18].
O desenvolvimento destas formas feudais leva diretamente ao desenvolvimento das formas típicas do latifúndio na América Latina, distribuídas por todo o território do continente, desde o México até a Argentina, desde o Chile até o Brasil (ainda que, evidentemente, com suas características particulares). Alain Rouquié, um historiador progressista, afirma que
“O que surpreende nas formas mais tradicionais e arcaicas do latifúndio é que se trata menos de uma empresa produtiva do que de uma instituição social e até política, pouco sensível à conjuntura econômica. O ‘sistema de hacienda’, tal como é encontrado nas zonas andinas ou na América Central [e também na América Portuguesa, a partir de certo momento] deve mais sua riqueza aos homens do que às terras. (...) O modo de aproveitamento que prevalece neste sistema pouco monetizado é uma espécie de parceria precária por prestação de trabalho. O patrão da fazenda, por um acordo tácito e revogável, empresta uma parcela [de terra] a um camponês, que tem a obrigação, juntamente com sua família, de pagar o arrendamento com jornadas de trabalho nas terras patrimoniais assim como mediante diversos serviços pessoais. Estes pequenos arrendatários sujeitos à prestação pessoal, chamados inquilinos no Chile, colonos no Peru e huasipungueros no Equador trabalham gratuitamente ou [no caso de formas que já se encontram em transição ao capitalismo] em troca de um salário simbólico”[19].
Do mesmo modo, as relações estabelecidas com o desenvolvimento da produção pastoril em grande parte das formações sociais latinoamericanas também se apresentam como casos particulares das relações de produção feudais. Nestas, cabe aos produtores a guarda e o pastoreio dos rebanhos, estando estes, em uma análise concreta da apropriação, sob posse destes produtores, devendo estes, ao mesmo tempo ceder uma determinada quantia das cabeças de gado criadas a seus senhores, satisfazendo suas obrigações econômicas[20].
Em todos estes casos encontramos relações de produção que constituem formas particulares do feudalismo, independentemente de suas eventuais relações com as formas superestruturais relativas às apresentações medievais do feudalismo tal como se desenvolveu na Europa ou mesmo na Ásia. Para dizer de outro modo, o feudalismo medieval europeu ou asiático são casos específicos do modo de produção feudal, assim como o é o feudalismo colonial na América Latina, forma resultante da subordinação do modo de produção feudal ao sistema colonial. A caracterização deste último como feudal não implica necessariamente que ele apresente sempre e necessariamente os mesmos elementos singulares que as formas medievais ou típicas do modo de produção feudal. O que é necessário, repetimos, é que o processo de produção material seja determinado pelas relações de produção servis – entendidas como obrigação coercitiva de satisfação das exigências econômicas de um senhor, estando o produtor de posse direta dos meios de produção, isto é, como “não detenção dos meios de produção e da força de trabalho pelos produtores imediatos sob a forma da aparente detenção dos meios de produção com a não detenção da força de trabalho e do produto”. Nestas condições, “o mais-trabalho só pode ser extraído deles pelo proprietário nominal da terra por meio da coerção extraeconômica, qualquer que seja a forma em que esta se apresente”, sendo necessárias, portanto, “relações de dependência pessoal”.
A base econômica constituída por estas relações de servidão constitui o modo de produção principal (o quantitativamente mais difundido nos processos de trabalho) e o dominante (aquele em função do qual é organizada a reprodução social) entre as formações sociais da América Espanhola ao longo de todo o seu período colonial. Apontamos que a sequência tendencial dos modos de produção não necessariamente deve se exprimir de maneira idêntica no desenvolvimento concreto de cadaformação social singular, e a predominância do modo de produção feudal nestas regiões o demonstra. Em certos casos estas formações sociais transitaram violentamente de uma organização da produção social nas formas da comunidade primitiva para uma organização feudal sem ter necessariamente de passar por um período escravista. Ainda que as formas escravistas tenham estado presentes em muitas formações sociais da América Espanhola, o escravismo desempenhou nelas uma função marginal em relação ao modo de produção feudal. Isto não quer dizer, obviamente, que as formações sociais necessariamente não possam reproduzir a sequência histórica dos modos de produção, mas apenas que esta tendência não é uma necessidade em cada caso particular de desenvolvimento e que a cada vez as formações sociais particulares reproduzem a tendência geral de uma forma singular, comoveremos adiante com o caso da estruturação das formas feudais na América Portuguesa.
Devemos, além disso, retificar a afirmação anterior de Alain Rouquié. O latifúndio não é “menos” uma empresa produtiva do que uma instituição política. Como vimos, são as relações de produção servis que fazem com que a instância política apareça como a instância dominante, aquela através da qual a obrigação econômica dos dominados para com os dominantes é garantida e exercida. Daí a ligação profunda entre o latifúndio e o exercício oligárquico do poder local. A estruturação da empresa econômica do feudalismo latinoamericano esteve essencialmente articulada ao desenvolvimento do sistema colonial e à acumulação de capitais nas formações sociais centrais. É justamente esta subordinação à acumulação de capitais e sua integração ao sistema colonial que é responsável por grande parte das particularidades que distinguem o feudalismo colonial latinoamericano do feudalismo medieval. Como afirma Ernesto Laclau em seu período marxista,
“Este caráter pré-capitalista das relações de produção dominantes na América Latina não apenas não foi incompatível com a produção para o mercado mundial, mas, pelo contrário, foi intensificado pela expansão deste último. O regime feudal das fazendas tendeu a aumentar as imposições servis sobre o campesinato na medida em que as crescentes demandas do mercado mundial impulsionaram a maximizar o excedente. De tal modo que, longe de constituir uma força desagregadora do feudalismo, o mercado externo tendeu a acentuá-lo e a consolidá-lo. Tomemos [por exemplo] a evolução da inquilinaje no Chile. Durante o século XVII, o ocupante obtinha a posse de suas terras em troca de uma taxa simbólica, mas este pagamento começou a adquirir significação econômica e a gravitar cada vez de maneira mais pesada sobre o inquilino na medida em que foram aumentando as exportações de trigo ao Peru depois do terremoto de 1688. O século XIX assistiu a um agravamento deste processo, determinado, novamente, pelas exportações crescentes de cereais; o trabalho exigido foi em muitos casos equivalente ao de um trabalhador permanente, enquanto se reduziam os direitos tradicionais dos camponeses, especialmente os de pastagem”[21].
A feudalidade das formações sociais coloniais e semicoloniais latinoamericanas, como a escravidão nestas mesmas formações, tem seu nível de exploração nos processos de trabalho aprofundado justamente em função de sua subordinação ao sistema colonial, exigindo, portanto, uma maior intensidade da opressão política para a garantia das obrigações servis em comparação com as formas típicas da feudalidade medieval. Aqui, como no caso anterior, os horrores do feudalismo são intensificados pelos horrores da acumulação de capitais. O desenvolvimento do imperialismo, a partir do fim do século XIX, e o tipo de capitalismo que ele impulsiona nestas formações sociais não implicará uma ruptura com a feudalidade, mas se apoiará nela e produzirá formas híbridas complexas. Neste caso, mais uma vez, o presente seguirá deformado pela reprodução do passado, não como aquilo que passou, mas como aquilo que persiste no próprio presente.
Exemplo III
No século XVIII a formação social da América Portuguesa passa por importantes transformações. Ao fim do século XVII o modelo da produção escravista do açúcar parecia haver encontrado um limite relativo para sua expansão com o fim do monopólio português, quebrado pela exploração das colônias holandesas, inglesas e, sobretudo, francesas. A expansão territorial havia cessado, e parecia não haver alternativa para a exploração da colônia. É então que se abre a fase da exploração mineradora na América Portuguesa, iniciando um novo ciclo da economia colonial. A região de Minas Gerais atrai grande parte da população interna ao mesmo tempo em que a população colonial entre em um ritmo de crescimento acelerado, passando de em torno de 100 mil habitantes ao fim do século XVI para 3 milhões e 300 mil habitantes no fim do século XVIII, tendo contribuído para isto entre 500-800 mil portugueses imigrados.
A circulação acelerada do minério permite, assim, a construção de novas estruturas de Estado, financiadas pela tributação do ouro, a ampliação das importações e o aumento da esfera do trabalho livre. Além disso, assistimos, no século XVIII, o nascimento de uma pequena burguesia urbana e o surgimento de novas contradições de classe entre esta e os interesses da burguesia comercial portuguesa. O desenvolvimento demográfico e da capacidade interna de consumo sustentam uma ampliação considerável das atividades de produção pastoril.
Mas, mais importante ainda, o ciclo da economia mineradora acelera uma tendência de transformação já existente na forma do trabalho escravo. Os preços de mercado dos trabalhadores escravos aumentam, levando a uma intensificação do tráfico negreiro, ao mesmo tempo em que há um deslocamento massivo de trabalhadores escravizados para as regiões mineradoras. Além disso, o próprio regime de escravidão tende a se alterar, uma vez que a atividade mineradora se desenvolve em condições muito diferentes da produção agrícola. O trabalho é, muitas vezes, exercido em territórios distantes dos proprietários de escravos, permitindo o trabalho por tarefa e mesmo o trabalho independente, sendo paga uma contribuição ao senhor de escravos[22]. Estas alterações aprofundam a tendência da formação social escravista colonial a uma transformação no sentido de sua ampla articulação com a servidão.
As relações de produção da servidão já existiam de maneira marginal mesmo no período escravista colonial da formação social da América Portuguesa, tanto nas missões amazônicas voltadas para o comércio de especiarias quanto no caso dos agregados rurais dos engenhos de açúcar. Nas primeiras, os missionários cristãos exploravam a força de trabalho indígena local, a coroa portuguesa tendo lhes atribuído o direito à exploração de seu trabalho por turnos de seis meses, tanto para a coleta das “drogas do sertão” quanto para a realização de trabalhos artesanais[23]. No segundo caso, pequenos lotes de terra próximas aos engenhos eram arrendados a pequenos produtores para o cultivo de gêneros de consumo nos próprios engenhos[24]. Além destas esferas, o modo de produção feudal se desenvolve de forma particular no caso da produção pecuária e das atividades de pastoreio amplificadas no século XVIII, forma que manterão, em seus traços gerais, até o início do século XX, como testemunhou Euclides da Cunha.
No entanto, as maiores zonas de produção servil serão aquelas que se desenvolverão no interior da própria produção escravista. Vimos anteriormente como, por uma série de erros metodológicos, Ciro Cardoso confundia a natureza formação social escravista colonial e a tomava como um suposto “modo de produção escravista colonial”. Seus apontamentos, no entanto, têm um elemento correto: a insistência na centralidade do papel que a concessão de lotes de terras aos produtores escravizados assumiu no Brasil, gerando o fenômeno chamado de “brecha camponesa”. A concessão de lotes de terras para os escravizados dispensava os senhores da organização direta do processo de sua reprodução, atribuindo a estes tempo para trabalhar nestes lotes e produzir alimentos para sua subsistência e para a circulação local. Ciro Cardoso chega mesmo a firmar que é justamente esta existência de uma “economia própria” o que diferencia o escravo do servo. Se Cardoso tira daí consequências confusas, estas considerações, no entanto, oferecem o próprio meio para retificá-las.
Como afirma um dos principais historiadores progressistas da escravidão colonial, a prática de conceder pequenos lotes de terra aos escravos para a produção de subsistência
“(...) era um costume antes mesmo da colonização do Brasil, com os portugueses na ilha de São Tomé. Essa prática ficou conhecida em várias regiões escravistas das Américas como ‘sistema do Brasil’. Há evidências em Pernambuco já em 1663. Ordens régias e alvarás das últimas décadas do século XVII instruíam sobre o ‘direito’ de tempo e terra estabelecido para os escravos tratarem de seu próprio sustento. Em 1701, o conhecido cronista Antonil louvava ‘o costume que praticam alguns senhores neste Brasil’: ‘lhes dão em cada semana um dia em que possam plantar e fazer seus mantimentos’. No primeiro quartel do século XIX, Charles Darwin, viajando pelo Rio de Janeiro, visitou uma fazenda de café onde os escravos trabalhavam ‘para si próprios’ nos sábados e domingos. No inventário de um fazendeiro no Vale do Paraíba foram arroladas, entre as dívidas, consideráveis quantias referentes ao pagamento ‘aos pretos desta fazenda de milho e feijão que colheram em suas roças e que se precisou para o consumo da mesma fazenda’. Já o barão de Paty do Alferes – num livro de memórias sobre a administração escravista – ressaltou a necessidade de conceder aos escravos tempo e parcelas de terras para constituírem suas roças de mantimentos e de que o próprio proprietário da fazenda comprasse os produtos excedentes oferecidos pelos escravos. Ele próprio comprava para revender o café proveniente das roças de seus escravos. Em Vassouras, em 1854, os fazendeiros, preocupados com as insurreições escravas, recomendavam que fosse permitido aos cativos possuírem roças para que se ligassem ‘ao solo pelo amor da propriedade’”[25].
É o desenvolvimento destas formas de produção, iniciado já ao fim do século XVII, que a produção mineradora aprofunda. O sistema dos roçados, com a concessão de parcelas de terra aos escravos, altera a natureza da escravidão colonial, sem por isso transformar seu caráter de exploração brutal. Os produtores simultaneamente têm seu corpo apropriado diretamente pelas classes dominantes como instrumento de trabalho, sendo forçados a trabalhar com condições objetivas de produção que lhes são alheias, ao mesmo tempo em que estão de posse de uma parcela de terra devendo, por uma coerção extraeconômica, satisfazer obrigações econômicas para com seus senhores. Os produtos de subsistência só são de fato comprados aos escravos em casos marginais, ainda que importantes, a sua aquisição permanecendo, como no exemplo acima, em muitos casos na conta das dívidas que o senhor tem direito de contrair sem jamais quitar. Esta pequena produção se encontra diretamente ligada à escravidão, e é uma das condições de sua reprodução. Quem poderia dizer onde termina a escravidão e onde começa a escravidão? “O escravo não tem uma economia própria, e é isto o que o diferencia do servo”. Não apenas os mesmos indivíduos portam relações de produção distintas, como no mesmo processo de trabalho as duas relações de produção se sobrepõem: a resistência dos escravizados ao trabalho é “reduzida” pela concessão de uma parcela de terra própria, ao mesmo tempo em que o problema de sua reprodução como escravos é resolvido parcialmente para os senhores.
Não se trata do caso de um novo modo de produção que combina as características da escravidão e da servidão em uma economia dependente – argumento, como vimos, historicista –, mas de uma formação social híbrida que integra dois modos de produção distintos e está subordinada ao sistema colonial. Esta subordinação, como vimos, é responsável por alterações específicas na constituição da formação social, em especial a intensificação da exploração dos produtores nos processos de trabalho. Escravidão, feudalismo, colonialismo: quem poderia imaginar que tantos horrores poderiam se articular tão profundamente?
“Sabe-se que as formas ‘puras’ do escravismo já se vinham entrelaçando, no correr dos anos [do século XVIII ao XIX], com algumas relações mais próximas do feudalismo, existindo, ao lado do trabalho escravo nos engenhos e fazendas, trabalhadores que se poderiam melhor classificar como servos da gleba. O próprio trabalhador escravo já acumulava relações de ambos os regimes, sendo em parte escravo e em parte servo. Uma fração de sua força de trabalho e do seu tempo era dedicada ao serviço de seu senhor, sobrando-lhe outra fração que empregava no cultivo de um pequeno trato de terra que lhe era cedido para seu cultivo e de onde tirava o necessário para sua alimentação, sendo-lhe permitido, às vezes, vender os excedentes”[26]
Esta articulação colonial entre escravidão e servidão se desenvolverá ao longo de todo o século XVIII na América Portuguesa, e, como vimos, marcará a escravidão brasileira até seus últimos momentos no século XIX, quando sua área de produção central se deslocar para o Vale do Paraíba. Esta forma híbrida terá o papel de forma de produção principal na formação social colonial da América Portuguesa até este momento, coexistindo com as relações de produção feudais da esfera pastoril e de outras formas marginais, assim como com o desenvolvimento do trabalho livre e de uma pequena burguesia urbana, também marginais. Propomos, assim, caracterizar este período como o desenvolvimento de uma formação social semi-escravista colonial.
As formas de servidão desenvolvidas em seu interior são resultado de uma tendência estrutural da própria escravidão. A resistência do produtor escravizado ao trabalho, sua baixa produtividade e o alto custo de sua reprodução tendem, em formações com parcelas de terras disponíveis, a desenvolver formas embrionárias da servidão como formas de superação parcial destas contradições. Não deve espantar, portanto, que a mesma tendência geral de transição tenha se apresentado tanto nas formas antigas quanto nas formas coloniais de escravismo.
Estas relações de produção feudais terão um longo papel no desenvolvimento da formação social em questão, mantendo-se mesmo depois da decomposição das relações de produção escravistas. É importante, no entanto, apontar que ainda hoje, muitas das chamadas “sobrevivências da escravidão” devem ser compreendidas, a partir do materialismo histórico, como formas próprias da servidão, ao menos no que diz respeito ao processo de trabalho. A escravidão se define, repetimos, pela apropriação direta do corpo do produtor como instrumento de trabalho. Ao se falar nas “sobrevivências da escravidão”, trata-se sobretudo de formas superestruturais.
Mesmo a ideologia racista e suas afirmações sobre a função de determinado segmento da população como força de trabalho é um acontecimento relativamente recente da história moderna, as formas ideológicas típicas de justificação do escravismo colonial tendo sido, sobretudo em suas fases iniciais, formas religiosas – ainda que estas contivessem de modo embrionário os elementos da ideologia racista posterior, se baseando em um fenômeno concreto de divisão da população de acordo com suas características físicas. A confusão do estatuto jurídico de escravo com a análise concreta das relações de produção sob as quais o processo de trabalho era realizado levou, e ainda leva, a uma série de afirmações mais ou menos inadequadas sobre a função do escravismo nas fases seguintes da formação social brasileira. A formação social brasileira é, certamente, uma das mais brutalmente racistas do mundo, ainda que este racismo não se expresse na segregação direta. Ele não é, por isso, menos genocida. Pelo contrário, se baseia no genocídio como política de Estado contra o setor mais explorado da força de trabalho, aquele mesmo setor segmentado pelo escravismo e que permaneceu, no período posterior, pressionado entre a servidão e a formação de um novo exército industrial de reserva.
A servidão dos camponeses no Brasil, tal como se verá nas fases seguintes da formação social da América Portuguesa, se vinculará às superestruturais feudais legadas pelo colonialismo português reproduzindo por um determinado período formas análogas àquelas encontradas no feudalismo colonial da América Espanhola. Com a diferença de que, no caso das zonas escravistas, esta servidão nasceu da escravidão e durante mais de um século se fundiu com ela, dando a ela um caráter mais brutal e intenso.
Exemplo IV
O período do século XIX foi, certamente, aquele com as maiores transformações jurídicas e políticas da formação social da América Portuguesa: o início da constituição de um aparelho de Estado centralizado com a transferência da sede da monarquia portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro e a formação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em 1815, a independência política em 1822, a abolição da escravidão em 1888 e a proclamação da república em 1889.
Esta sequência de transformações refletiu a transformação das bases da economia colonial. O longo declínio da produção colonial açucareira, iniciado já no século XVIII, e o declínio da exploração da mineração, já a partir das décadas finais do século XVIII, acentuam as contradições entre as classes dominantes e a pequena burguesia locais, por um lado, e as classes dominantes coloniais, por outro. Estas contradições entre as classes dominantes, por sua vez, serão determinadas por aquelas contradições já dadas desde o início do processo histórico da colônia, que opõem as classes dominantes, os senhores de terras e escravos e a burguesia comercial portuguesa, às classes dominadas, os trabalhadores escravizados e os trabalhadores em relações servis, e às nações indígenas. A sucessão de conjurações, revoltas e revoluções do século XIX exprime estas contradições e os antagonismos dos quais, ao fim, as classes dominantes locais saíram vitoriosas, conseguindo reprimir com sucesso todas as mobilizações de caráter popular (como a Conjuração Baiana, a Guerra dos Cabanos e a Balaiada) e manter o poder de Estado sob seu controle, garantindo a unidade política de todo o território da América Portuguesa com a formação do Estado nacional brasileiro.
O fim do século XVIII anunciava já um novo período de estagnação geral com o esgotamento da atividade mineradora. A alta dos preços do café no mercado mundial oferecerá às classes dominantes locais uma saída desta situação de crise. Com efeito, a produção do café exigia baixo investimento em instrumentos de trabalho e uma ampla porção de terras disponíveis, encontrando as duas no território brasileiro. A partir do fim da primeira década do século XIX a exportação de café entra em ritmo acelerado, tendo seu volume multiplicado por cinco no período entre 1820-1850, ainda que, a partir da década de 1840, o café tenha começado também um processo irreversível de desvalorização.
Este ciclo econômico impulsiona novamente o sequestro e o tráfico de escravizados no Atlântico Sul. Esta população escravizada foi também parcialmente suprida pelos escravos já mobilizados para as atividades de mineração, de maneira a atender as demandas de forças de trabalho da lavoura cafeeira. Estima-se que já na metade do século XVII a população brasileira era formada por mais de 66% de escravizados, enquanto ao fim do século XVIII esta população se reduziu a 48%. Esta porcentagem se elevará no início do século XIX, para um total estimado da população escravizada de 50,5% nos anos de 1817-1818, a partir dos quais estes números começam a cair continuamente, atingindo um total estimado de 31% em 1850 até os 15% de escravizados registrados no censo de 1872[27].
Além disso, sob o estatuto jurídico da escravidão, a realidade do processo de trabalho havia se alterado sem por isso se transformar fundamentalmente. A forma híbrida de servidão e escravidão que se desenvolveu ao longo do século XVIII atingiu seu mais alto ponto de difusão no século XIX nas lavouras de café fluminenses, já tendo ampliado por todo o país o sistema dos roçados.
Já a partir da década de 1840 se torna claro que a escravidão não tem mais a função dominante na organização da reprodução da formação social brasileira, e que já em seus últimos anos a estimativa é a de que o número de produtores sob o estatuto jurídico da escravidão seja de menos de um terço da população. A partir de 1845, com a declaração da lei Aberdeen que permitia aos ingleses a captura de qualquer navio que operasse o tráfico de escravos, submetendo-o aos tribunais britânicos por pirataria, o tráfico de escravos começa a declinar rapidamente. Em 1850, a leu Eusébio de Queirós reprimia o tráfico no território imperial, abrindo caminho para a publicação da lei do ventre livre e a dos sexagenários, em 1871, e a supressão jurídica da escravidão em 1888.
Desde pelo menos o início do século XIX, uma série de tendências estruturais pressionava para a supressão da escravidão colonial. A primeira delas, não por acaso omitida pela historiografia burguesa, é o processo desencadeado pela grande Revolução Haitiana, que levou à abolição da escravidão na antiga colônia francesa e à sua independência em 1804. Em 1806 os Estados Unidos proíbem a importação de escravos. Em 1807 a Inglaterra suprime o tráfico em todo império britânico. A escravidão era suprimida como forma de manter os domínios coloniais, evitando a rebelião generalizada das massas escravizadas.
Além disso, a burguesia inglesa já buscava limitar o tráfico de escravos desde os últimos anos do século XVIII, como maneira de combater os baixos custos das mercadorias exportadas pelos países que detinham grandes colônias escravistas, em especial a França[28], buscando ampliar o mercado consumidor para seus produtos. O século XIX assiste ao crescimento gradual da oferta força de trabalho livre disponível, o que torna – sobretudo considerando as limitações do tráfico negreiro e a força iminente das rebeliões de escravos – maiores os custos do investimento nos escravos diretos. Por fim, a conferência de Berlim em 1884 e o desenvolvimento do plano das potências imperialistas para a colonização da África colocam um ponto final ao tráfico de escravos, uma vez que os imperialistas dependiam da oferta local de força de trabalho, força de trabalho que o tráfico decompunha constantemente.
É neste cenário que se intensifica um fenômeno próprio da história da formação social brasileira, já em desenvolvimento desde as últimas décadas do século XVIII, corretamente identificado por Sodré: a regressão feudal. Este fenômeno é aparentemente paradoxal, uma vez que em suas apresentações típicas a transição do modo de produção escravista ao modo de produção feudal corresponde ao desenvolvimento do nível das forças produtivas. No entanto, no caso da formação social brasileira a transição entre as relações de produção escravistas – ou, antes, estre as formas semi-escravistas – e as relações de produção feudais acompanhou uma decomposição da atividade econômica e do nível de desenvolvimento das forças produtivas. Com a decomposição da produção escravista açucareira e mineradora e a transição das zonas focais de atividade exportadora para as regiões fluminense e paulista da produção cafeeira, desenvolve-se, nas áreas abandonadas pelo desenvolvimento escravista, a dominação da servidão. Nestas, cada senhor de terras passa a depender da tributação da economia do sistema de roçados, atando por vínculos de dependência os produtores às terras.
“O fenômeno de transição de vastas áreas antes escravistas a um regime caracterizado de servidão ou de semi-servidão é possível, no Brasil, pela disponibilidade de terras. Este é um dos fatores fundamentais, mas não deve ser apreciado pelo que apresenta mas pelo que efetivamente é. A disponibilidade de terras é um fato inequívoco – mas de terras apropriadas, não de terras por apropriar. Há espaços vazios, mas não há propriedades a conquistar: não há transferência de propriedades. Está claro que o problema não é estático: grandes áreas não apropriadas, já objeto de ocupação, são apropriadas, por diferentes processos, entre os quais o da violência pura e simples, é como se sempre tivessem sido propriedade. É nesses vazios que se estabelece a base da regressão. Não se trata, assim, de uma espécie de ‘fronteira móvel’ como se pensa às vezes, mas de uma invasão formigueira de pequenos lavradores ou de pequenos criadores que estabelecem suas roças de mera subsistência e que permanecem, no conjunto, ausentes do mercado. A extensão em que o fenômeno se opera e a variedade das formas que apresenta são enormes.
Trata-se de um quadro feudal inequívoco. Quando o fenômeno se generaliza, os seus reflexos no mercado de mão-de-obra tornam-se evidentes: o modo de produção escravista está irremissivelmente condenado. Tornou-se um anacronismo. O interessante, entretanto, é que ele não se torna um anacronismo ao mesmo tempo em toda a extensão brasileira. Vai apresentando seu caráter anacrônico quer nas áreas em que o trabalho escravo evolui para o trabalho livro, que nas áreas em que o trabalho escravo não encontra condições para evoluir para o trabalho livre e evolui para a servidão.
O modo escravista está sendo corroído pelas duas extremidades, portanto. Se não distinguirmos as diferenças entre uma e outra, - uma é avanço, a outra é atraso, e ambas tendem a distanciar-se cada vez mais e a levar a uma desigualdade regional clamorosa, - não compreenderemos claramente as razões da extinção do regime de trabalho escravo em nosso país.
Convém começar pela face de avanço, aquela em que relações de escravo e de senhor são substituídas por outras relações que cabem perfeitamente na classificação genérica do trabalho livre, mas já não cabem tão perfeitamente na classificação de trabalho assalariado. O trabalho assalariado, a rigor, preenche apenas uma faixa de área muito ampla em que o trabalho escravo vai desaparecendo. Foi assinalado já aqui que a massa escrava evolui muito mais para a servidão do que para o trabalho livre”[29].
A ideia de uma transição direta da escravidão ao trabalho livre é um mito que deve ser apontado. As relações de produção capitalistas só se desenvolvem em sentido próprio e de maneira significativa no Brasil na segunda metade do século XIX, tanto na formação de trabalhadores assalariados rurais quanto urbanos. E este desenvolvimento capitalista, ainda que em evidente expansão, só acontece em um ritmo relativamente lento até o início da Primeira Guerra Mundial e permanece, sobretudo, restrito às regiões cafeeiras do sudeste do país em que a força de trabalho livre se torna rapidamente abundante, disponibilidade na qual o trabalho imigrante não teve um papel pequeno.
Em todo caso, a lei de terras de 1850, com a percepção da iminência da decomposição escravista, declarava que todas as terras do território da formação social brasileira eram pertencentes ao Estado, só podendo ser adquiridas mediante a compra e não mediante posse. Juridicamente, estava vedado o acesso dos escravos libertos à terra. É um erro supor que a força de trabalho escravizada, uma vez liberta, se desloca imediatamente para os ambientes urbanos formando uma reserva disponível para o trabalho livre. A população urbana era minoritária na formação social brasileira até o fim dos anos 1960[30]. Evidentemente, apenas a consideração da ruralidade da população até então não pode ser diretamente associada à predominância de relações de produção feudais. O que leva a percebê-lo era, antes – além da discussão sobre as formas da servidão e semi-servidão nos meios urbanos – o próprio predomínio do sistema de roçados tal como este se organizava em terras já apropriadas pelo latifúndio. Pode-se compreender extensão da economia feudal pela análise daquele que foi o mais rigoroso economista burguês brasileiro, Celso Furtado, ainda que sua análise permaneça nos limites do economicismo que caracteriza a economia feudal como uma forma de “economia de subsistência” e tenda a ignorar o problema das relações de produção.
“O setor de subsistência, que se estendia do norte ao extremo sul do país, caracterizava-se por uma grande dispersão. Baseando-se na pecuária e numa agricultura de técnica rudimentar, era mínima sua densidade econômica. Embora a terra fosse o fator mais abundante, sua propriedade estava altamente concentrada. O sistema de sesmarias concorrera para que a propriedade da terra, antes monopólio real, passasse às mãos do número limitado de indivíduos que tinham acesso aos favores reais. Contudo, não esta este o aspecto fundamental do problema, pois sendo a terra abundante não se pagava propriamente renda pela mesma. Na economia de subsistência, cada indivíduo ou unidade familiar deveria encarregar-se de produzir alimentos para si mesmo. A roça era e é a base da economia de subsistência. Entretanto, não se limita a viver de sua roça o homem da economia de subsistência. Ele está ligado a um grupo econômico maior, quase sempre pecuário, cujo chefe é o proprietário da terra onde ele tem a sua roça. Dentro desse grupo, desempenha funções de vários tipos, de natureza econômica ou não, e recebe uma pequena remuneração que lhe permite cobrir gastos monetários mínimos. No âmbito da roça o sistema é exclusivamente de subsistência; no âmbito da unidade maior é misto, variando a importância da faixa monetária de região para região, e de ano para ano numa região.
Havendo abundância de terras, o sistema de subsistência tende naturalmente a crescer, e esse crescimento implica, as mais das vezes, redução na importância relativa da faixa monetária. O capital de que dispõe o roceiro é mínimo, e o método que utiliza para ocupar novas terras, o mais primitivo. Reunidos em grupos, abatem árvores maiores e em seguida usam o fogo como único instrumento para limpar o terreno. Aí, entre troncos abatidos e tocos não destruídos pelo fogo, plantam a roça. Para os fins estritos de alimentação de uma família, essa técnica agrícola é suficiente. Tem-se repetido comumente no Brasil que a causa dessa agricultura rudimentar está no caboclo, quando o caboclo é simplesmente uma criação da economia de subsistência. Mesmo que dispusesse de técnicas agrícolas muito mais avançadas, o homem da economia de subsistência teria que abandoná-las, pois o produto de seu trabalho não teria valor econômico. A involução das técnicas, com o tempo, transformaria esse homem em caboclo.
Se bem que a unidade econômica mais importante da economia de subsistência fosse realmente a roça, do ponto de vista social a unidade mais significativa era a que tinha como chefe o proprietário das terras. A este interessava basicamente que o maior número de pessoas vivesse em suas terras, cabendo a cada um tratas de sua própria subsistência. Dessa forma o senhor das terras, no momento oportuno, poderia dispor da mão-de-obra de que necessitasse. Demais, dadas as condições que prevaleciam nessas regiões, o prestígio de cada um dependia da quantidade de homens que pudesse utilizar a qualquer momento e para qualquer vim. Em consequência, o roceiro da economia de subsistência, se bem que não estivesse ligado pela propriedade da terra, estava atado por vínculos sociais a um grupo, dentro do qual se cultivava uma mística de fidelidade ao chefe como técnica de preservação do grupo social”[31].
Propomos, assim, caracterizar esta fase da formação social brasileira pela predominância de relações de produção servis assim como por sua dominação na reprodução social, com a permanência de uma esfera de produção semi-escravista de grande importância, mas que se contrai rapidamente de 1840 até a abolição em 1888, e com o lento desenvolvimento da produção capitalista – desenvolvimento que se acelera a partir de 1914. É importante enfatizar que, ainda que seja minoritário nesta formação social e que não domine a reprodução dos outros modos de produção, este desenvolvimento capitalista tem um ritmo de crescimento contínuo e crescente, chegando a níveis relativamente elevados em determinadas regiões do país a partir dos primeiros anos do século XX. Estes polos capitalistas regionais, no entanto, não são sistemas isolados na formação social brasileira,suas classes dominantes foram formadas a partir de uma diferenciação própria das classes dominantes na produção rural. As relações de produção capitalistas se desenvolverão tanto nas cidades quanto nos campos neste período, mas coexistindo sempre com a servidão em diversos níveis. Em todo caso, as zonas de produção capitalista serão francamente minoritárias[32].
As zonas capitalistas permanecem, assim, com uma importância relativamente menor do que as amplas esferas de produção desenvolvidas nas formas da feudalidade e da semiescravidão. Estas formas de produção social pré-capitalistas coexistem sempre subordinadas à acumulação capitalista externa, reproduzindo sua integração ao sistema colonial. A independência jurídica conquistada em 1822, acrescentada à situação colonial da base econômica, nos permite caracterizar esta formação social como uma formação semicolonial. É importante apontar, no entanto, que essa situação semicolonial se desenvolve ainda muito lentamente até se consolidar no final do século. Este período de transição da formação social brasileira se estende desde meados do século XIX até 1930. Propomos que ele seja caracterizado como uma formação social feudal semicolonial. A partir de então, o desenvolvimento capitalista no Brasil levará a transformações profundas nesta formação social.
Sobre as formações híbridas - Introdução
Sobre as formações híbridas - Parte 3: O problema da semifeudalidade
[1] Para todos estes pontos e sobre o problema da heterogeneidade temporal, ver o excelente trabalho de Harry Harootunian. Ainda que Harootunian tenda usar de maneira inadequada a categoria da subsunção formal para explicar esta heterogeneidade temporal, seu trabalho é uma exposição importante de sua realidade nos trabalhos de Marx, mas também nos do marxismo revolucionário de Lênin, Rosa Luxemburgo, Gramsci e Mariátegui. HAROOTUNIAN, Harry. Marx after Marx.
[2] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Lutas de classes na Rússia, p. 105.
[3] TSÉTUNG, Mao. Sobre a prática e a contradição, p. 120.
[4] Ver REY, Pierre-Philippe. As alianças de classes, p. 168.
[5] CERM. Sobre o feudalismo, p. 17-18.
[6] Para todos estes pontos, ver AMIN, Samir & VERGOPOULOS, Kostas. A questão agrária e o capitalismo, pp. 14-15, 18-19.
[7] Ver GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio,p. 21-24. A estes erros se soma outro, também historicista, que consiste em afirmar, para o caso de formações sociais coloniais, que estas seriam feudais porque no período de sua colonização sua metrópole era também uma formação social dominada pelo modo de produção servil/feudal. Esta afirmação evidentemente não segue de uma análise da estrutura do modo de produção da formação social colonial em questão, mas apenas de uma analogia entre ela e a formação social colonizadora.
[8] DOBB, Maurice. Estudios sobre eldesarrollo del capitalismo, p. 53-54. O grifo é nosso.
[9] ALTHUSSER, Louis. Écrits sur l’histoire, p. 145-146.
[10] MARX, Karl. O capital – livro III, p. 851-852.
[11] TSÉTUNG, Mao. “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China” in Obras escolhidas, vol. 2¸p. 497.
[12] Ver MARX, Karl. Grundrisse, p. 388-415.
[13]
Ver AMIN, Samir. Class and Nation, p.
58-59. Não podemos aceitar, no entanto, as conclusões de Samir Amin sobre a
escravidão, resultantes da confusão que já demonstramos em nossa primeira parte
entre as categorias de modo de produção e formação social, assim como das
formas específicas de transição das formações sociais dominadas pelo modo de
produção comunista primitivo àqueles dominadas pelo modo de produção
escravista. Além disso é importante apontar, como demonstra Samir Amin, que a
associação da Grécia clássico ao “ocidente” é um dos mitos de fundação da
própria ideologia eurocêntrica, o período antigo da formação social grega
sendo, em todos os sentidos, pare do mundo das formações sociais “orientais”.
Para este ponto e a crítica ideologia eurocêntrica em geral, ver AMIN, Samir. O
eurocentrismo, pp. 20-23, 31-34.
[14] CERM. Sobre o feudalismo, p. 18-19.
[15] Ver HARNECKER, Marta. Los conceptos elementales del materialismo histórico, p. 154-164.
[16] Como veremos, estas teses tiveram consequências graves na formação do revisionismo latinoamericano, uma vez que eram indissociáveis das teses de que o papel do movimento comunista nesses países é buscar uma aliança de classes com a burguesia nacional e formar com ela uma frente única contra a oligarquia fundiária e o imperialismo.
[17] Retomamos este debate em todos os seus aspectos a partir das contribuições absolutamente essenciais de Ernesto Laclau, então marxista, no texto “Feudalismo y capitalismo en América Latina” in Modos de producción en América Latina.
[18] Ver SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil. 15-22, 40-45, SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil¸ p. 124, 130-131, 134-139 e GUIMARÃES, Alberto Passos, p. 52.
[19] ROUQUIÉ, Alain. América Latina – Introducción al extremo occidente, p. 89-90.
[20] Para a análise do pastoreio, ver as seções indicadas anteriormente dos textos de Sodré. A percepção desta realidade, no entanto, é bastante anterior. Em Os sertões Euclides da Cunha registra que “Ao contrário do estancieiro [do Sul do país], o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, das rendas de suas terras, sem dividas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos. Graças a um contrato pelo qual recebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos – nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra – perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não pertencem. O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par. Não os fiscaliza. Sabe, quando muito, os nomes. Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau a pique à borda das cacimbas, rapidamente como se armasse tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão que não avaliam. (...) O ajuste de contas faz-se no fim do inverno e realiza-se, ordinariamente, sem que esteja presente a parte mais interessada. É formalidade dispensável. O vaqueiro separa escrupulosamente a grande maioria de novas cabeças pertencentes ao patrão (nas quais imprime o sinal da fazenda) das poucas, um quarto, que lhe couberam por sorte. Grava nestas seu sinal particular; e conserva-as ou vende-as. Escreve ao patrão, dando-lhe conta minuciosa de todo o movimento do sítio, alongando-se aos mínimos pormenores; e continua a faina ininterrupta”. Euclides da Cunha já identificava, do mesmo modo, o regime tradicional de produção das fazendas no nordeste brasileiro de então como uma forma de feudalismo. Ver, respectivamente, CUNHA, Euclides da. Os sertões, pp.121-123 e 106.
[21] LACLAU, Ernesto. “Feudalismo y capitalismo en América Latina” in Modos de producción en América Latina, p. 36.
[22] Para todos estes pontos, ver SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil, p. 134-140.
[23] SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil, p. 130-131.
[24] GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 51-52.
[25] GOMES, Flávio dos Santos. Mocambos e quilombos – uma história do campesinato negro no Brasil, p. 30-31.
[26] GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio, p. 96.
[27] Ver PATTERSON, Orlando. Slavery and Social Death, p. 363.
[28] Ver JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros¸ p. 60-62.
[29] SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil, p. 248. Ver igualmente, para o problema da regressão feudal, SODRÉ, Nelson Werneck. Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, pp. 47, 85-86.
[30] Ver http://www2.fct.unesp.br/nera/atlas/caracteristicas_socioeconomicas_b.htm#populacao. Consultado em 24/04/2021.
[31] FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil¸ p. 177-179.
[32] Para ser ter uma ideia mais clara, Octavio Brandão afirma que “o Brasil possuía, em 1920, 13 mil estabelecimentos industriais, para 648 mil estabelecimentos rurais. Os primeiros valiam 1 milhão e 815 mil contos; e os segundos 10 milhões e 568 mil contos. Os trabalhadores fabris montavam a 275 mil. Os trabalhadores rurais a cerca de nove milhões. (...) A pequena propriedade rural não alcança sequer a décima parte do território: 9%. Portanto, o agrarismo nacional é o da grande propriedade, do latifúndio”. BRANDÃO, Octavio. Agrarismo e industrialismo, p. 34.
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